sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Elementos Inseparables


Ontem, vi o filme “Gloria” do chileno Sebastián Lelio; a certa altura, surge um poema; um poema que nos agarra pela mão e nos leva a passear à beira-mar (o poema era lido em Viña del Mar). Eu não conhecia o poema mas fui procurá-lo onde se procura tudo hoje em dia, no Google. Ao Google (e o corrector de texto do meu computador exige que Google seja escrito em letra maiúscula devido, certamente, à sua omnisciência) disse o que me lembrava do poema “si tu fueras mar, yo sería playa” e o Google disse-me que o poema era de Claudio Bertoni.

No poema, há palavras que nos marcam; “bufanda”: “prenda de vestir que consiste en una tira larga y ancha de lana, seda o piel que se lleva alrededor del cuello, a veces tapando la boca, como abrigo o adorno: en invierno, bufandas, pañuelos y guantes se convierten en elementos inseparables; a finales de los sesenta la bufanda era considerada una prenda de intelectuales”. Há definições onde cabe toda uma poesia de vida.

No filme, há também a lânguida música brasileira que nos embala; apetece-nos sair do filme e ir passar o serão em casa de amigos onde alguém toque e onde se cante bossa nova. Ainda haverá serões assim?  Ontem, houve.

Poema para una joven amiga que intento quitarse la vida

me gustaría ser un nido si fueras un pajarito

me gustaría ser una bufanda si fueras un cuello y tuvieras frío

si fueras música yo sería un oído

si fueras agua yo sería un vaso

si fueras luz yo sería un ojo

si fueras pie yo sería un calcetín

si fueras el mar yo sería una playa

y si fueras todavía el mar yo sería un pez

y nadaría por ti

y si fueras el mar yo sería sal

y si yo fuera sal

tú serías una lechuga

una palta o al menos un huevo frito

y si tú fueras un huevo frito

yo sería un pedazo de pan

y si yo fuera un pedazo de pan

tú serías mantequilla o mermelada

y si tú fueras mermelada

yo sería el durazno de la mermelada

y si yo fuera un durazno

tú serías un árbol

y si tú fueras un árbol

yo sería tu savia y correría

por tus brazos como sangre

y si yo fuera sangre

viviría en tu corazón.

(Claudio Bertoni)

Hoje, há soldados russos em pelo menos um dos aeroportos da Crimeia.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Quando tropeçamos na (in)visibilidade


Vinha de bicicleta a tentar escapar à chuva miudinha que teimava em não parar quando vi um senhor de sacos-(c)asa abrigado, à porta do “Palais Universitaire”. Quase não se dava por ele, apesar de estar sozinho num dos arcos que dá acesso ao pátio coberto de um dos edifícios da “Neustadt”, bairro construído quando os alemães ainda contavam ficar pela Alsácia (e não só) durante os tais 1000 anos. Há uma clarabóia enorme – na verdade, todo o telhado – que banha de claridade as colunas neo-clássicas e aquele chão de mármore. Nesse mesmo espaço ocorreu a aula inaugural da “Reichsuniversität” (a Universidade Ocupada de Estrasburgo, enquanto a Universidade Livre de Estrasburgo partia até Clermont-Ferrand) e também a sessão inaugural do Conselho da Europa, antes de haver o edifício que lhe é, hoje, destinado.

Voltemos ao senhor dos sacos-(c)asa que se abrigava em frente ao pórtico que havia visto passar comandantes e académicos nazis e pró-nazis, democratas que tentavam unir a Europa, estudantes que querem aceder ao saber dos livros e fora deles. O senhor dos sacos-(c)asa chamou-me ainda mais a atenção porque eu acabava de ver o documentário de Claus Drexel, “Au bord du monde”.

Talvez uma das coisas mais importantes que este documentário faz é dar um nome às pessoas (e aos rostos) que dormem na rua, em Paris: Wencelas, André, Michel, Pascal, Closte (?), Po Lingh, Christine… Quando se dá um nome a alguém, essa pessoa e esse rosto deixam de ser invisíveis; cresce-nos, por dentro e por fora, uma responsabilidade, talvez originada da empatia que aquele rosto (como diria Lévinas) e o seu nome nos impõem. Ao conhecido “ton visage m’oblige” talvez se possa acrescentar “ton (pré)nom m’oblige”. Deparamo-nos com várias tentativas de obnubilar, tornar invisíveis pessoas – cuja tentativa é que deixem de o ser – que “não interessam”. No Ruanda, os tutsis foram apelidados de “baratas”, os Judeus, nos campos de concentração, não tinham um nome, tinham um número e a esqualidez fazia com que todos se parecessem iguais, sem a individualidade que caracteriza o ser humano (mas individualidade não tem que rimar com individualismo).

As pessoas (sim, são-no) do documentário de Drexel são artistas de circo (funâmbulos) que caminham na corda bamba sem rede de segurança; contudo, nós, os espectadores, não os vemos. Caem e não há espanto; voltam a endireitar-se para voltar a caminhar e não há reacção do público (que nem se apercebe que não é público mas co-actor). A que distância deixamos o dever de nomear e, por conseguinte, o dever de dar a mão ao outro? Quando não há tacto não há contacto.

No documentário, havia também um senhor que, ao entrar no seu “squat”, por debaixo da ponte “Louis Philippe”, titubeou, atrapalhou-se com a sua canadiana e caiu. Não sei o que aconteceu depois. Ele chama-se Marco.
 
 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A Dª Rosa em flor


A Dª Rosa, que tem nome de flor, é da Camacha; é uma das senhoras da Camacha que vende flores no mercado dos Lavradores. Quem nunca foi ao mercado dos Lavradores não conhece verdadeiramente a Madeira nem o Natal na Madeira. A Dª Rosa diz que, este ano, não foi um bom ano para junquilhos, “quando vinha a folha não vinha flor”. No mercado, este ano, poderá haver muita folha sem flor; na tangerina, e no odor que a rodeia, há também folha, pelo menos, na boa tangerina. Há também olhos dormentes – em botânica, significa que as folhas se enrolam durante a noite – que, às vezes, se poderiam confundir com botões de rosa. A Dª Rosa (co)move-se quando fala nos “seus emigrantes”. Qual será a família que passará pelo dia 23 de Dezembro incólume por causa dos “seus emigrantes”?

Um abraço emigrante e boa noite do mercado!


P.S.: Obrigado à Antena 1 Madeira por me ter feito chegar a Dª Rosa e o cheiro a tangerina do mercado dos Lavradores às portas de casa, em Estrasburgo.

sábado, 28 de setembro de 2013

(Desa)pega(do)


Aviso à navegação: este bilhete foi escrito, dentre outras coisas, em torno das variações da palavra pega, no dicionário electrónico, priberam.pt/dlpo/

 
Hoje, de manhã, bebi chá Leão de ca(mo)mil(l)a; e que bonito logótipo é aquele em que chá Leão se escreve formando uma chávena de chá (e o chá já vem na chávena). O “c” é a pega da chávena – a pega da chávena também se pode chamar “asa” da chávena - e é bem verdade que também se voa quando se bebe chá Leão. Voamos como a pega (comum no Norte de Portugal) por entre o branco e preto da sua plumagem e, às vezes, quando gostamos realmente do que bebemos, sentimo-nos como o mastaréu, que, do alto do mastro, encavalitado na pega, não percebe o que anda a fazer aquele leão que anda a separar folhas para chá.

Às vezes, o chá não é bom (o que não é o caso do chá Leão) e, então, temos que beber o chá como quem agarra o touro à mão, pelo cachaço ou pelo lombo; às vezes, o chá está muito quente; e, então, utilizamos uma pega para segurar a chaleira quando vertemos o chá na nossa chávena que seguramos pela pega.

O gosto do chá acompanha-me pelo dia fora e sei que não vou sozinho.
 
 
 
 

Algures, em Londres, no Dia Internacional dos Direitos Humanos

(À procura de uns papéis, encontrei este escrito no verso de uma folha que reproduzia a Carta de D. Manuel para os Reis Católicos, o manuscrito com o original da Carta que, em 1501, D. Manuel enviou aos Reis Católicos descrevendo a viagem da frota de Pedro Álvares Cabral).

Numa rua de Londres, há alguém cabisbaixo, com a face escondida. Vemos apenas, daquele monte humano, uma parte dos pés – como uma estátua de um deus do Olimpo – onde ainda se conseguem entrever os pés ou parte deles – o que parecem umas pernas e um gorro onde está escrito “London”. “London” será, provavelmente, uma formação, que, inicialmente, humana, por vezes, não tem face; quer dizer, face tem, mas está escondida. Às vezes, a face encontra-se num daqueles muitos jardins privados cujas grades não conseguem conter o chilrear dos pássaros, mas, muitas vezes, a face está sentada na rua, encoberta, com um gorro ou um boné e uma mão estendida; e nós? Europeus co-titulares de um Prémio Nobel da Paz o que fazemos para que esta face não se mantenha encoberta?

terça-feira, 17 de setembro de 2013

“Et si les lendemains dansaient?”


Em homenagem ao dia de hoje que é ontem com roupas de amanhã

Neste dia que não parecia fadado para que se passasse grande coisa, por volta das 19h, saí para comprar pão: nestes 10 minutos de passeio, aconteceu-me tudo o que pode caber num dia. Amaldiçoei a chuva até ver o arco-íris; parei por uns minutos porque um arco-íris merece que se pare para vê-lo; fui até à padaria mas, ao ver a porta fechada, lembrei-me que era segunda-feira e estava fechada; contudo, se não tivesse ido até aí, não teria visto o arco-íris. Vi também uma rapariga que quase desaparecia por debaixo do seu guarda-chuva transparente, o que não deixa de ser interessante: alguém que se escondia por debaixo de algo transparente.

Depois, caminhei até à padaria mais próxima; no caminho, lembrei-me da minha desventura de hoje: cortei o meu cartão sim para adaptá-lo a um outro telefone e, desde então, o telefone indica que estou em “roaming”. Finalmente, um telefone que parece adaptar-se aos tempos que vivemos: mesmo estando no que deveria ser o seu país de origem, indica que está em “roaming”. Haverá custos associados? A talho de foice, digo também que me senti em “roaming”, na Madeira, há dias. Senti-me turista, em casa, e não gostei. Seria do chapéu de palhinha (mas ele tinha sido comprado na Rua de Santa Maria; pois, talvez nenhum madeirense compre chapéu de palhinha na Rua de Santa Maria; será como o peixe espada com banana?) ou de andar a saltitar do jardim do Museu Frederico de Freitas até ao Convento de Santa Clara?

Depois, quando voltava a casa, na rua Beethoven (e talvez não por acaso) vi um graffiti (acho que, talvez, o primeiro graffiti que vi neste bairro): “et si les lendemains dansaient” (e se os amanhãs dançassem); abriu-se-me um sorriso de ponta a ponta, escarlate, como a tinta do graffiti. Já estou em pulgas para amanhã (na verdade, hoje, dia em que escrevo). Como diria o José Duarte, na Antena 1, “A menina dança?”.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Ainda antes do café da manhã

Aviso à navegação: este texto deve ler-se ao som de "Apinajazz"


Ainda antes do café da manhã, em São Paulo, ouvimos a cidade a ser construída. Aquele barulho firme do martelo que modela a pedra, nesta cidade-de-pedra-e-esperança-de-um-amanhã-diferente.
 
Ouço também um apartamento que se põe bonito para os sorrisos que irá receber mais tarde.

Neste quarto de paredes brancas e memórias de cor, ouço também uma cidadania em movimento, que se põe bonita para os sorrisos que quer legar a quem virá depois. É uma cidadania que se constrói como o martelo que molda a pedra na cidade.

Ontem, ao chegar a esta megapole, vi, da mesa onde me sentava, uma luz suspensa do alto da cidade. Cuidar da cidadania e da nossa casa pode ser tão frágil e tão importante como cuidar dessa luz suspensa. Contudo, atenção, porque a cidadania, ao contrário da cor, não pode ser uma impressão que a luz reflectida pelos corpos produz no órgão da vista (ou sê-lo-á?).
Escrever este texto de uma rua com nome indígena faz todo o sentido.