Hoje em dia, parece que ou temos sempre a bola e que as linhas de passe estão
(quase) todas fechadas ou que ninguém nos passa a bola. Vi finalmente o filme “Linha de Passe” de Walter Salles e de Daniela Thomas. O DVD contém também uma
entrevista com os realizadores; a páginas tantas, Daniela Thomas enuncia que o
filme é sobre veracidade. Fiquei na dúvida: seria sobre a veracidade da cidade
ou sobre ver a cidade. Pensei cá para mim que podemos ver a cidade sem veracidade. A
família do filme, que todos os dias e a toda a hora tem que abrir linhas de
passe mesmo sem saber se poderá alguma vez participar daquele jogo, mora na
Cidade Líder, um distrito-subúrbio (ou será subterfúgio?) a leste da cidade de São Paulo; mas poderia também chamar-se Cidade Invisível. É uma cidade que
não se sabe onde é, da qual não se ouve falar; é uma cidade a quem não se passa a
bola, mas ela apanha-a para a meter em jogo, para que o jogo não pare. O jogo não pode
parar.
A veracidade da cidade está em ter a coragem de interromper o jogo e
imaginá-lo fora do estádio onde nos disseram que podíamos jogar. Aí, haverá
linhas de passe para todos e a cidade invisível será, finalmente, a cidade
líder. Para isso é preciso que nos lembremos que este é verdadeiramente um jogo colectivo.
No momento em que escrevo, parece que o partido de Marine Le Pen obteve 6
400 000 votos; diz-se que um em cada cinco franceses (dos que votam – e muitos,
cerca de 80%, votaram) votou nela. A pergunta que todos temos de colocar-nos é
no que votam as pessoas que votam neste partido de extrema-direita, de ideário
xenófobo, chauvinista, proteccionista, anti-europeísta, anti-euro. O eleitorado
é um eleitorado jovem; será apenas um voto de protesto? Como se deixam mais de
6 milhões de pessoas ludibriar por um partido deste calibre? O Estado de Direito
Democrático francês terá de estar à altura de dar-lhes uma resposta convincente
mas republicana (no que isso significa deste lado do Atlântico).
Claro que o UMP, o partido de Nicolas Sarkozy, muito contribuiu para esta
situação; o UMP pensou que poderia cultivar em terras do “Front National” – o partido
de Le Pen – semeando o medo da imigração, propagando uma iníqua “hierarquia de
civilizações”, referindo "ad nauseam" a proposição do PS francês sobre o voto dos estrangeiros nas eleições locais, e, mais do que isso, construindo toda uma ideologia de “nós” e “eles”.
Um “nós” que se quer puro, “franco-français” como se diz por aqui; a novidade é
que esta França não existe; a França hodierna é uma França plural,
multi-étnica, com várias crenças e quem pensar que pode dar respostas
monolíticas a sociedades plurais engana-se tanto como quem pensa que pode dar
respostas nacionais a problemas europeus e globais.
Claro que os políticos dos “grandes” e “menos grandes” partidos franceses,
terão que questionar-se sobre o porquê desta situação e terão que começar já
hoje a tentar corrigi-lo. A República Francesa e os valores de humanismo, de
solidariedade plasmados no tríptico-ideário de “liberté, egalité, fraternité”
não podem estar à mercê de uma senhora que se arvora o direito de apropriar-se
da “Marseillaise” – o hino francês. A “Marseillaise” é de todos nós; a “Marseillaise”
é um hino à liberdade, à humanidade; a “Marseillaise” escutava-se no filme “Casablanca” -
quando cantada pelos resistentes, por aqueles que aspiravam por um mundo livre, mais igual, sem o opróbrio da guerra - e abafava o hino alemão cantado
pelos generais alemães no período da II Guerra Mundial.
Eu vou também combater
as ideias de Marine Le Pen assobiando a “Marseillaise”. A “Marseillaise” foi
escrita e cantada pela primeira vez em Estrasburgo; Estrasburgo é a capital da Alsácia,
onde o “Front National” obtém resultados muito expressivos. Diz-se que há uma
grande clivagem entre as zonas urbanas e as zonas rurais na Alsácia, onde as
zonas rurais votariam mais à direita (e mesmo na extrema-direita: há aldeias
onde o partido mais votado é a extrema-direita) e as zonas urbanas seriam mais
liberais; muito bem; há então que perceber o porquê desta situação; há que
ouvir as pessoas descontentes mas, sobretudo, adoptar uma posição pedagógica e
ser portador de uma mensagem clara: os estrangeiros, os muçulmanos, as pessoas
que se encontram em situação vulnerável, as pessoas de etnia cigana, os
homossexuais não podem ser bodes expiatórios. Não queremos novas Inquisições
com outras vestes.
Marine Le Pen fala, em directo, a partir do “Equinoxe”; uma metáfora?
Depois de um dos dois equinócios anuais, os dias começam a crescer; assim, pode
ser que a luz vença as trevas também nestas eleições mas para que isso aconteça
é necessário políticos à altura e uma sociedade civil que intervenha na causa
pública. Infelizmente, e no que diz respeito aos políticos, algumas altas figuras do UMP caçavam, já ontem, o voto do "Front National".
A noite eleitoral já não é a mesma; dispersamos o olhar entre os diferentes
canais de informação e as redes sociais. Aparentemente, das coisas mais
importantes para os canais de TV é entrever a face de Nicolas Sarkozy por
detrás dos vidros escuros da sua viatura francesa; e que espectáculo bárbaro é
ver todas as motas de jornalistas que se aproximam perigosamente do carro em
que segue para não mais que mostrar a sua face.
E depois de libertar-se de Sarkozy – o que não é necessariamente evidente
depois deste dia de eleições, e, sobretudo da 3ª posição da candidata de
extrema-direita, Marine Le Pen – o que nos dará o novo Presidente? Um
Presidente que é eleito na base do anti-alguma coisa, terá que, desde o
primeiro dia do seu mandato, saber construir.
Da minha parte, não quero mais directrizes “Merkozi” para a Europa e
bater-me-ei por isso; é o mínimo que podei fazer para celebrar o 25 de Abril que
se celebra daqui por 2 dias (talvez, e para não variar, com a excepção do Governo
Regional da Madeira). Por razões de ordem técnica, não consigo ouvir o som do vídeo da "Marseillaise" que aqui incluo; hoje, a luta é outra; a nossa "Marseillaise" terá que ser cantada por todos para que abafe Marine Le Pen quando esta a canta, deturpando-a.