Joaquim Leitão falava da dinâmica, que existia nos seus filmes, entre o
respeito por aquilo que é e por aquilo que poderia ser. No meu entendimento,
artistas – incluindo, obviamente, os músicos – são agentes prevaricadores, que
arriscam mais naquilo que poderia ser do que naquilo que é. É uma tensão
quotidiana, é caminhar no fio da navalha; é um funâmbulo que pé ante pé
percorre aquela linha tensa, suspensa do chão, sem rede, e que quando menos se
espera dá aquela pirueta que não vem de lado algum, produzida não pelos músculos
do artista mas pelo sonho de circo que temos em nós. O circo, esse mundo onde o
que é encontra aquilo que poderia ser.
Andar pela vida – que é também sem rede mesmo quando a pensamos ver - é
como tentar afinar um instrumento (e um piano também se afina). É preciso o som
justo. Eu, enquanto jurista e entusiasta de direitos humanos, não sou diferente
e aquilo que poderia ser, aquilo que deveria ser, o “quid ius”, o justo –
recordo aqui que o novo Presidente eleito pelos Franceses disse que, no final
do seu mandato, queria ser julgado pela justeza das suas decisões - é o que me
faz singrar; mas, alto, Joaquim Leitão diz-nos que é preciso também respeitar
aquilo que é, aquela ficção de realidade porque, caso contrário, a nossa récita
de vida, de projecto de vida, não será verídica porque não será justa. Os
sonhos terão que ser minimamente verídicos para serem sonhados? Ou para serem
vividos? Felizes aqueles que viverão sonhos não verídicos!
Ontem, fui apanhado de surpresa – como todos nós – com a notícia que me
chegava daquela falésia do Guincho; da imagem que Bernardo Sassetti andava à
procura, da imagem abstracta, que talvez uma falésia, o mar, o vento, bemóis e
sustenidos que enrolavam na onda que batia contra a rocha continham.
Há dias, soube que há um povo no nordeste do Togo, os Batammariba, cujo
modo de vida foi considerado património imaterial da humanidade pela
UNESCO. A transmissão do saber dos Batammariba é baseada na escuta, numa
atenção estrita entre a gestualidade, o quotidiano, a maneira de falar e a
inflexão da entoação. Os Batammariba são uma outra maneira de descrever
Bernardo Sassetti e todos aqueles que acreditam num mundo que está por vir que
é melhor do que aquele que aqui está; e que, por isso, lhe acrescentam o que
têm de criatividade e engenho.
Quando soube que Bernardo Sassetti perecera, tentei, com afã, lembrar-me
onde o tinha visto ao vivo – e aqui, a expressão, trai-me, ou talvez não – pela
última vez: teria sido no festival de jazz de Coimbra, ou no Funchal Jazz, ou
no Porto, ou teria somente imaginado sonhos possíveis de ver os “3 pianos” (que
vi nessa mesma noite, por amável simpatia – a simpatia do serviço público - da
RTPi)?
Nesse mesmo dia, fui ver, em homenagem ao Bernardo Sassetti, o pianista
turco Fazil Say ( e que bonito é um pianista ter espelhado no nome a récita
do dizer, “say”). As mãos de Say dançavam durante o concerto, abriam caminho
para o seu corpo, para a orquestra filarmónica de Estrasburgo, e para toda a
plateia que ali estava; as mãos de Say introduziam-nos àquele mundo do que
poderia ser. As mãos de Sassetti faziam o mesmo. E a imagem sonora que Sassetti
procurava por entre as falésias do Guincho: onde estará elas em nós?
O mais importante sobre Bernardo Sassetti é, talvez, o que ouvi, através de
um ecrã de televisão, da boca de um amigo: humano, essencialmente humano. Como um
grande artista que era, humano, acima de tudo. Um abraço!
Depois de ancorado e sobre o título: retroversão para inglês de “Tudo está equilibrado com a pessoa que eu talvez
tenha sonhado ser", que é uma frase retirada da entrevista de Ana Sousa Dias à Beatriz Batarda, a esposa de Bernardo Sassetti, para a revista "UP", cujo lema é "ouse sonhar mais alto" e que pode ser lida aqui.