O senhor Júlio tem cabelos brancos como a neve que nunca cai em Belo
Horizonte. Ainda se vêem alguns tufos de cabelo pintado mas a alvura vai vencendo
uma luta desigual.
Ele tem uma lanchonete na Savassi, um dos bairros de Belo Horizonte, há 35
anos, disse-me ele, abrindo a mão em arco. Ele veste camisa e colete o ano
todo, quando faz frio e quando faz menos frio. Um homem sem hábitos não é homem.
O negócio talvez tenha baixado desde que os administradores da Praça da
Liberdade passaram para a cidade administrativa desenhada por Niemeyer, em
Confins, perto do aeroporto. O senhor Júlio talvez não tivesse pensado que
aquele arquitecto que não gosta de linhas rectas, e, por conseguinte, de
esquinas, lhe iria trocar as voltas. A verdade é que Seu Júlio não deixa de
admirar aquele vão livre de 147 metros - o maior do mundo - do Palácio
Tiradentes, um dos edifícios da cidade administrativa. O senhor Júlio sorri por
dentro ao pensar que o vão livre (“a pala”) do Siza, no Pavilhão de Portugal,
do outro lado do Atlântico, tem apenas 75 metros. Tiradentes – ou Xavier, como
lhe chamava Véronique, uma das personagens do imperdível livro “A Paixão deTiradentes” - não tinha disputado apenas a soberania injusta da coroa
portuguesa, tinha, através de Niemeyer, provado que, nem tudo o que desafia as
leis (da Coroa e da gravidade) tem necessariamente de cair, ou, por outras
palavras, que nem tudo o que cai é porque não se poderia ter mantido de pé.
Ao senhor Júlio também lhe corre sangue português nas veias; não se sabe
muito bem donde mas, isso, não é importante. O sangue português e brasileiro
são indissociáveis e não era preciso um acordo ortográfico para nos sentirmos mais
próximos.
Sentamo-nos numa mesa perto da calçada portuguesa de gosto tropical e vemos
Belo Horizonte passar; e o bolo é bom e o cafezinho sabe bem. De repente, sai
uma empregada da cozinha que adverte Seu Júlio para que um salgado já tá
acabando e que é melhor fazer mais. O Seu Júlio, como que transfigurado em
general de um exército de um só soldado (soldada, porque no Brasil tudo tem
feminino, o que não é necessariamente mau) estica a farda que ainda agora era
colete, ajeita o cabelo e, no meio daqueles olhos mansos, diz, com um gesto
resoluto da cabeça e seguro de si: “Avance!”.
No Senhor Júlio, os salgados e o cafezinho ainda são acessíveis a uma bolsa
normal. Numa Savassi que se moderniza, o que vai sendo sinónimo de aumento
generalizado de preços, a pergunta que me ia colocando era: até quando?
Prezado Marco
ResponderEliminarNão faço ideia do motivo, mas essa sua mensagem só apareceu hoje na minha caixa. Mesmo tardiamente, preferi respondê-la, pois fiquei tocada pelo seu texto. ´Sinto-me assim com relativa frequencia a respeito de alguns livros e "ouvir" que você sentiu-se desta maneira a respeito deste singelo trabalho deixa-me cheia de alegria e motivação. Li o texto no seu blog (gostei bastante, a propósito) e agradeço por ter nos mencionado. Espero que tenha encontrado o futuro que estava a procurar. Conheço um bom tanto da França, mas, ainda, nada da região de Estrasburgo (a não ser por "ouvir dizer"). Você é português? Viajei por Portugal (do Porto até Lisboa, com paradinhas e paradinhas) e fiquei encantada com o país dos meus antepassados. Senti-me em casa e vi que a tão falada cordialidade dos brasileiros é um herança da gentileza dos portugueses. Por favor, faça-me saber se recebeu esta mensagem, pois fiquei desolada por não tê-la visto antes. Um grande abraço para o proseador poeta.
Stefania G Assunção