Um abraço, Henrique!
O quarto ainda não acordou completamente da noite.
Há silêncios e a luz enrola-se na cortina como a onda nos calhaus das praias
das ilhas vulcânicas.
Ontem, soube do Henrique. O Henrique toca(va) trompa
(e sem trompa(s) não há vida), teclado , flauta de bisel e outras coisas.
Lembro-me de abrir os pesados livros de Direito na mesa branca da marquise da casa do Henrique e da
Margarida, onde voavam os passarinhos. Os passarinhos ficavam à solta naquela marquise e depois voltavam a casa para
descansar.
Partilhávamos refeições e ideias naquela mesa
branca onde eu abria os livros pesados de Direito. Antes, a aparelhagem estava
perto da marquise e eu gostava de pôr discos enquanto comíamos, como quase sem
se ouvir, ouvindo, para acompanhar e não para interromper a conversa. Gostava
particularmente da Modinha para Gabriela que ficou conhecida por causa da banda
sonora da telenovela «Gabriela, Cravo e Canela»: « Quando eu vim para esse
mundo/ eu não atinava em nada/Hoje eu sou Gabriela,/Gabriela iê, meus camaradas».
Há tempos, soube que um casal amigo (e é bonito que um casal, no plural, possa
ser amigo, no singular) do meu irmão teve uma menina a quem chamaram Gabriela.
Agora, quando vir e ouvir esta Gabriela, lembrar-me-ei do Henrique e a vida é também
prodigiosa por esta continuidade humana que nos oferece.
O Henrique, ainda há pouco, na última vez que o
vi, falava-me de várzeas, porque eu e a minha família íamos subir o Douro ;
abria, à minha frente, enciclopédias de Portugal para que eu me documentasse
sobre os sítios por onde passaria. Depois, íamos a varanda ver Gaia e imaginar
o Porto(gal).
O Henrique e a Margarida conduziram-me várias
vezes ao porto do aeroporto, onde voamos e não nos espantamos, tão normal que é,
hoje em dia, voar. O Henrique, apesar daquele véu nonchalant, mantinha em si a capacidade de se espantar e só quem
tem traz o menino que é(ra), por dentro, e que ainda se consegue espantar com
os olhos de adulto que carregamos.
Acabo de saber que a Elodie pode ligar-se à
internet, neste primeiro dia do fim-de-semana. A internet liga-nos mas o
Henrique liga(va)-se aos outros por outros meios : através dos seus
puzzles (explicava-me que, primeiro, deveria seriar-se as peças por cores ou
temas, e, depois, começar a aventura da construção, que, como a aventura da
vida, também precisa de preparação).
Antes, o Henrique trabalhava na Foz, quase diante da
Afurada. Eu gostava de ir até à Foz, perto de onde o Henrique trabalhava e
apanhar o barco para ir até à Afurada. Chegar à Afurada de barco é uma
descoberta que não acontece quando se chega de carro. Havia redes de pesca a
secar e a serem remendadas (como, às vezes, se remenda a vida que nos vai
(des)gastando) para que continuassem a trazer o peixe nosso de cada dia numa espécie
de milagre dos peixes revisitado. Havia pessoas simples na Afurada e estórias
amargas de vida que se escondiam nas casas exíguas das ruas pequeninas da
Afurada (e quem viu o filme « Jaime » ou o ficção real da vida dos
moradores da Afurada sabe do que falo). Eu sinto um apego especial pela Afurada
e por todos aqueles que labutam por um amanhã melhor.
Lembro-me, uma vez, que já tinha ido a alguns espectáculos,
durante a semana que estava a ficar em casa da Margarida e do Henrique, e, que,
ainda assim, queria muito ir a um espectáculo no Auditório Municipal de Gaia.
Queria mas não podia porque o dinheiro não é elástico. Ao jantar, falávamos dos
planos para essa noite e mencionei, en
passant, que queria muito ir ver este concerto mas que não podia. O
Henrique prontificou-se a pagar-me o bilhete do espectáculo e apesar dos meus
recuos (que não era assim tão importante e que poderia vê-la –não me consigo
recordar o nome da artista portuguesa – numa outra oportunidade), o Henrique compreendeu
imediatamente que aquele espectáculo, como a vida, são irrepetíveis. Quando
cheguei ao Auditório Municipal de Gaia, apercebi-me que havia mais músicos em
palco que espectadores. Tinha sido o primeiro dia europeu sem carros, no Porto,
e as pessoas tinham, talvez, decidido ficar por casa. Era como se os músicos
tocassem só para mim e para o Henrique que estava ali, sem ter vindo (e, isto,
Margarida, acho que era o que te queria dizer e não pude, ao telefone).
Post-Scriptum: Um dia destes, meto-me a fazer
aquele puzzle do Tomi Ungerer que tinha pensado, várias vezes, em enviar-te,
Henrique.
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