Ele lembrava-se daquela manhã em que tinha ido aos correios para abrir uma
conta postal (uma conta bancária sem a avidez dos bancos, pensava ele, e,
talvez, com critérios menos apertados visto que ele vinha ali sem o sacrossanto
contrato de trabalho em que parecemos não existir no mundo da maioria governado
por uma minoria cooptada, apesar de não se saber muito bem como tal cooptação
ocorreu): a senhora do banco (postal), cujo tom se alterara quando descobriu
que ele não tinha um contrato de trabalho nem estudava (mas então o que faz,
este (?), pensaria ela), sempre de costas direitas, como convém a um
representante do banco (mesmo que postal) dizia que sim, que poderia abrir a
conta mas que o cartão a ser entregue era um cartão “especial” (e ele já estava
farto, desde que deixara de trabalhar por conta de outrem, que o seu nome fosse
associado a essa palavra, “especial”: na verdade, especial significava ter
casado – e, por isso, deixado o seu trabalho para que pudesse ir morar com a
esposa no país onde ela trabalhava – e não saber muito bem quando poderia
entrar na magnífica aventura de ter filhos porque o contrato a termo certo dela
e a ausência de contrato e de termo dele não favoreciam entrar em aventuras).
Tal cartão especial teria levantamentos especiais, com limites especiais, tudo
nivelado por baixo e, quando tentava saber das razões de tanta especialidade, a
resposta vinha embrulhada em papel de oferta: “mas o senhor não tem contrato de
trabalho”.
O banco postal situava-se na avenida daquele mercado ao ar livre, onde ele
gostava de ir. Aquele mercado onde a Europa se cruzava com o Magrebe: quanto mais
se aproximava dos “stands” europeus, mais os preços se afastavam do Magrebe.
Ele gostava também do vendedor chinês, a quem comprava carne já pronta com
legumes e recebia sempre um sorriso como troco. O que não gostava nada era a
culpa que, na Madeira - donde ele vinha - se atribuía aos chineses. Os chineses
que só empregam chineses, que vêm para aqui sem pagar impostos durante cinco
anos. O que ele pensava era que não eram os chineses que aqui estavam em
questão, o que estava em questão eramos nós próprios, a nossa capacidade, ou
falta dela, de re-criar um país, imaginar e implementar uma Europa aberta,
aberta porque solidária (Schengen é bom para quem já lá está, como o
capitalismo é bom para os vencedores) e fazer da rua o lugar mais democrático
de todos, como aquele dia em que a rua entrara na Assembleia através de uma
canção, que, na letra, falava de uma “terra da fraternidade”: não uma terra
ilusória, utópica (mesmo que tenha sido um português a chegar à Utopia de
Thomas More), mas uma terra de esperança, hic
et nunc, e, porque não (?), num país onde se volta a cantar na rua.
E lembrava-se bem daquele filme francês, “L’emploi du temps” (o título em
inglês também lhe parecera revelador “Time Out”) em que o marido saia de casa,
vestido para ir trabalhar mas sem trabalho e esperava o dia todo para que
pudesse regressar; tinha pejo em dizer a alguém que tinha perdido o
trabalho.
Não era isto que ele queria para o seu país, nem para a sua casa
europeia, nem para a vizinhança da sua casa. O que ele queria era
desenvolvimento, sim, mas um desenvolvimento de rosto humano. Os cidadãos
europeus pareciam estar à altura; e a Europa?
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