Vinha de bicicleta a tentar
escapar à chuva miudinha que teimava em não parar quando vi um senhor de
sacos-(c)asa abrigado, à porta do “Palais Universitaire”. Quase não se dava por
ele, apesar de estar sozinho num dos arcos que dá acesso ao pátio coberto de um
dos edifícios da “Neustadt”, bairro construído quando os alemães ainda contavam
ficar pela Alsácia (e não só) durante os tais 1000 anos. Há uma clarabóia
enorme – na verdade, todo o telhado – que banha de claridade as colunas
neo-clássicas e aquele chão de mármore. Nesse mesmo espaço ocorreu a aula
inaugural da “Reichsuniversität” (a Universidade Ocupada de Estrasburgo,
enquanto a Universidade Livre de Estrasburgo partia até Clermont-Ferrand) e
também a sessão inaugural do Conselho da Europa, antes de haver o edifício que
lhe é, hoje, destinado.
Voltemos ao senhor dos sacos-(c)asa
que se abrigava em frente ao pórtico que havia visto passar comandantes e
académicos nazis e pró-nazis, democratas que tentavam unir a Europa, estudantes
que querem aceder ao saber dos livros e fora deles. O senhor dos sacos-(c)asa
chamou-me ainda mais a atenção porque eu acabava de ver o documentário de Claus
Drexel, “Au bord du monde”.
Talvez uma das coisas mais
importantes que este documentário faz é dar um nome às pessoas (e aos rostos) que
dormem na rua, em Paris: Wencelas, André, Michel, Pascal, Closte (?), Po Lingh,
Christine… Quando se dá um nome a alguém, essa pessoa e esse rosto deixam de
ser invisíveis; cresce-nos, por dentro e por fora, uma responsabilidade, talvez
originada da empatia que aquele rosto (como diria Lévinas) e o seu nome nos
impõem. Ao conhecido “ton visage m’oblige” talvez se possa acrescentar “ton
(pré)nom m’oblige”. Deparamo-nos com várias tentativas de obnubilar, tornar
invisíveis pessoas – cuja tentativa é que deixem de o ser – que “não
interessam”. No Ruanda, os tutsis foram apelidados de “baratas”, os Judeus, nos
campos de concentração, não tinham um nome, tinham um número e a esqualidez
fazia com que todos se parecessem iguais, sem a individualidade que caracteriza
o ser humano (mas individualidade não tem que rimar com individualismo).
As pessoas (sim, são-no) do
documentário de Drexel são artistas de circo (funâmbulos) que caminham na corda
bamba sem rede de segurança; contudo, nós, os espectadores, não os vemos. Caem
e não há espanto; voltam a endireitar-se para voltar a caminhar e não há
reacção do público (que nem se apercebe que não é público mas co-actor). A que
distância deixamos o dever de nomear e, por conseguinte, o dever de dar a mão
ao outro? Quando não há tacto não há contacto.
No documentário, havia também um
senhor que, ao entrar no seu “squat”, por debaixo da ponte “Louis Philippe”,
titubeou, atrapalhou-se com a sua canadiana e caiu. Não sei o que aconteceu
depois. Ele chama-se Marco.
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