sábado, 27 de abril de 2013

Conta Postal

Ele lembrava-se daquela manhã em que tinha ido aos correios para abrir uma conta postal (uma conta bancária sem a avidez dos bancos, pensava ele, e, talvez, com critérios menos apertados visto que ele vinha ali sem o sacrossanto contrato de trabalho em que parecemos não existir no mundo da maioria governado por uma minoria cooptada, apesar de não se saber muito bem como tal cooptação ocorreu): a senhora do banco (postal), cujo tom se alterara quando descobriu que ele não tinha um contrato de trabalho nem estudava (mas então o que faz, este (?), pensaria ela), sempre de costas direitas, como convém a um representante do banco (mesmo que postal) dizia que sim, que poderia abrir a conta mas que o cartão a ser entregue era um cartão “especial” (e ele já estava farto, desde que deixara de trabalhar por conta de outrem, que o seu nome fosse associado a essa palavra, “especial”: na verdade, especial significava ter casado – e, por isso, deixado o seu trabalho para que pudesse ir morar com a esposa no país onde ela trabalhava – e não saber muito bem quando poderia entrar na magnífica aventura de ter filhos porque o contrato a termo certo dela e a ausência de contrato e de termo dele não favoreciam entrar em aventuras). Tal cartão especial teria levantamentos especiais, com limites especiais, tudo nivelado por baixo e, quando tentava saber das razões de tanta especialidade, a resposta vinha embrulhada em papel de oferta: “mas o senhor não tem contrato de trabalho”.

O banco postal situava-se na avenida daquele mercado ao ar livre, onde ele gostava de ir. Aquele mercado onde a Europa se cruzava com o Magrebe: quanto mais se aproximava dos “stands” europeus, mais os preços se afastavam do Magrebe.

Ele gostava também do vendedor chinês, a quem comprava carne já pronta com legumes e recebia sempre um sorriso como troco. O que não gostava nada era a culpa que, na Madeira - donde ele vinha - se atribuía aos chineses. Os chineses que só empregam chineses, que vêm para aqui sem pagar impostos durante cinco anos. O que ele pensava era que não eram os chineses que aqui estavam em questão, o que estava em questão eramos nós próprios, a nossa capacidade, ou falta dela, de re-criar um país, imaginar e implementar uma Europa aberta, aberta porque solidária (Schengen é bom para quem já lá está, como o capitalismo é bom para os vencedores) e fazer da rua o lugar mais democrático de todos, como aquele dia em que a rua entrara na Assembleia através de uma canção, que, na letra, falava de uma “terra da fraternidade”: não uma terra ilusória, utópica (mesmo que tenha sido um português a chegar à Utopia de Thomas More), mas uma terra de esperança, hic et nunc, e, porque não (?), num país onde se volta a cantar na rua.

E lembrava-se bem daquele filme francês, “L’emploi du temps” (o título em inglês também lhe parecera revelador “Time Out”) em que o marido saia de casa, vestido para ir trabalhar mas sem trabalho e esperava o dia todo para que pudesse regressar; tinha pejo em dizer a alguém que tinha perdido o trabalho.
Não era isto que ele queria para o seu país, nem para a sua casa europeia, nem para a vizinhança da sua casa. O que ele queria era desenvolvimento, sim, mas um desenvolvimento de rosto humano. Os cidadãos europeus pareciam estar à altura; e a Europa?

sábado, 20 de abril de 2013

Conversas de futuro que nascem numa padaria


Andava a matutar há já uns dias onde é que haveria uma padaria perto do apartamento onde agora estou a ficar, em Tbilisi. Há um pão ázimo que é muito conhecido por aqui, e, o que é ainda mais importante, é bom!

Há bossa nova na rádio (há sempre bossa nova na rádio mesmo quando eu não escuto rádio) e olho para um pátio onde em dias de sol – como não é o de hoje – convergem as famílias que não vivem nas fachadas dos edifícios. Na verdade, em Tbilisi, isso é mais ou menos democrático: quem vive na fachada do edifício, vive também nas traseiras do mesmo. Há basquetebol e jogos de cartas (o que eu gosto de jogos de cartas e das coisas que se dizem enquanto jogamos cartas que nos passam pelas mãos como pensamentos pela cabeça). Da secretária onde escrevo, vejo este pátio, agora esvaziado pela chuva. Tenho, por sobre a mesa, flores de olor forte, como (es)cravos em mês de Abril, e não me canso de olhar para arquitecturas antinómicas que se avizinham.

O que é importante é que descobri uma padaria onde há pão ázimo, um pão que, no meu imaginário, se associa ao Afeganistão, com um “ovo para molhar”, pela manhã, feito pelo nosso cozinheiro Afegão do Paquistão.

Não sabia como dizer pão em georgiano pelo que depois de tê-lo dito em inglês, disse-o em russo. A senhora do balcão percebeu-o. Disse que sim e que estava lá atrás. Eu pedi um pequeno porque nunca se sabe como será mas, aqui, não deveria ter duvidado: havia clientela à porta e uma furgoneta com trabalhadores à espera para saciar o apetite da manhã de trabalho.

(O prato do pão estava vazio e lá fui eu em mais uma viagem até à cozinha porque não se pode escrever verdadeiramente sobre pão sem prová-lo).

Por alguma razão, foi o patrão que me trouxe o pão (e a palavra pão cabe na palavra patrão), num saco azul de mar, como se ele adivinhasse todas as estórias que cabiam neste pão. Tentei perguntar como se dizia pão em georgiano mas não fui bem sucedido. (O prato do pão está vazio, novamente, será que o texto já vai muito alongado?).

Ele disse-me, então, que entrasse nesta padaria de 2 divisões e mostrou-me o forno. O forno não é na parede como estou habituado; é no chão, como no deserto. Tentei falar-lhe do Sahara e de como, aí, também se faz esse mesmo pão (ou mais ou menos) da mesma maneira (ou mais ou menos), onde se cavam buracos na areia e se usa excremento de camelo como combustível. Ele não percebeu a palavra “Sahara”, talvez aqui se diga de outra maneira mas, agora, já tenho um pretexto para futuras conversas.