quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Crónicas de um país em guerra, II


O que era estranho não era haver uma imagem de uma baguete na reportagem da Agence France Presse; o que era estranho era o contexto: aquela baguete, esse substantivo feminino que amolece corações como se amolece estômagos, posicionada como um míssil de longo alcance (apesar deste míssil não matar ninguém, apenas a fome), encimava um monte de provisões que esperava por ser cuidadosamente acondicionado no blindado que seguiria para o Norte (do Mali); a ajuda veio do Norte para o Sul para que se pudesse combater a Norte evitando perigos ao Sul, que se propagariam a Norte.

Entre caixas de munições, mochilas com o essencial para sobreviver, rádios e sonhos de estabilidade e unidade, havia aquela baguete. Apontaria também ela para o Norte?

Minutos antes, via Daniel Cohn-Bendit discursar, no Parlamento Europeu, perante a Alta Representante da União (?) [Europeia] para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança; ele dizia que falamos em “nós” mas são as tropas francesas que estão no terreno; que “nós” vamos enviar os enfermeiros para cuidar dos feridos enquanto os franceses, sozinhos, estarão apeados, no Norte (ou a caminho do Norte). A Alta Representante tomava notas enquanto olhava, de quando em vez, para Cohn-Bendit. Será que essas notas apontariam também para Norte?

A baguete, fresca, com rasgos de padeiro, apontava, certamente, para Norte. A dificuldade é saber quem e o que regressará do Norte.

Crónicas de um país em guerra, I


Hoje, é terça-feira, dia de mercado. De manhã, nevava, mais e mais. Agora, parou. Os carros ainda mostram que nevou e que, provavelmente, voltará a nevar.

Hoje, não é um dia como os outros. Escrevo de um país em guerra, em guerra desde sexta-feira (não, não me parece que tenha sido sexta-feira santa). Houve, talvez, um negrume no céu como os lenços que, no imaginário colectivo estrangeiro, as mulheres portuguesas ainda usam para cobrir a cabeça.

O aviãozinho de madeira que trouxe do mercado modelo (e, por conseguinte, um avião modelo) de Salvador, adquire toda uma outra dimensão desde sexta-feira.


Olho para a fotografia e vejo que está ao lado de um “pin” onde se inscreve “osez la tendresse”, que tem uma bota de viloa como se fosse a Sicília e tapa um gato japonês que tem a pata direita levantada (será sorte ou dinheiro? Nunca sei.). Mais abaixo - e penso que será de difícil leitura - há um São José que perdeu a cabeça e deixou o presépio (agora, Maria e o Menino Jesus formam uma família monoparental). Mais à direita (como na Europa) há um “pin” onde se lê “Mission Possible” e que, de quando em vez, me encima os bolsos dos casacos, quando ainda não há frio de Inverno como hoje.

Já quase a fugir da imagem há uma estrela da Cidade do Cabo, para onde nos guiará? Parece que para as “Wild Things Africa”.

Admito que tive que me levantar para ver que aquele selo que quase não se vê (como nos correios, onde os selos quase já não se vêem) é da Tunísia e mostra o anis verde, uma erva doce.

O “pin” do barrete de vilão está vazio; talvez procure a cabeça de São José. A chave do avião, essa, continuará por ali numa luta desenfreada entre o São José que perdeu a cabeça e a bota de viola como se fosse a Sicília.

Hoje, é terça-feira, de um país em guerra, desde a minha secretária.

(Aviso à navegação: apesar de ter tentado várias vezes, não me foi possível adicionar a fotografia de que vos falo ao texto; o espaço outrora ocupado por imagens, é agora ocupado por um vazio: será isso a metáfora da guerra?).