segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A Dª Rosa em flor


A Dª Rosa, que tem nome de flor, é da Camacha; é uma das senhoras da Camacha que vende flores no mercado dos Lavradores. Quem nunca foi ao mercado dos Lavradores não conhece verdadeiramente a Madeira nem o Natal na Madeira. A Dª Rosa diz que, este ano, não foi um bom ano para junquilhos, “quando vinha a folha não vinha flor”. No mercado, este ano, poderá haver muita folha sem flor; na tangerina, e no odor que a rodeia, há também folha, pelo menos, na boa tangerina. Há também olhos dormentes – em botânica, significa que as folhas se enrolam durante a noite – que, às vezes, se poderiam confundir com botões de rosa. A Dª Rosa (co)move-se quando fala nos “seus emigrantes”. Qual será a família que passará pelo dia 23 de Dezembro incólume por causa dos “seus emigrantes”?

Um abraço emigrante e boa noite do mercado!


P.S.: Obrigado à Antena 1 Madeira por me ter feito chegar a Dª Rosa e o cheiro a tangerina do mercado dos Lavradores às portas de casa, em Estrasburgo.

sábado, 28 de setembro de 2013

(Desa)pega(do)


Aviso à navegação: este bilhete foi escrito, dentre outras coisas, em torno das variações da palavra pega, no dicionário electrónico, priberam.pt/dlpo/

 
Hoje, de manhã, bebi chá Leão de ca(mo)mil(l)a; e que bonito logótipo é aquele em que chá Leão se escreve formando uma chávena de chá (e o chá já vem na chávena). O “c” é a pega da chávena – a pega da chávena também se pode chamar “asa” da chávena - e é bem verdade que também se voa quando se bebe chá Leão. Voamos como a pega (comum no Norte de Portugal) por entre o branco e preto da sua plumagem e, às vezes, quando gostamos realmente do que bebemos, sentimo-nos como o mastaréu, que, do alto do mastro, encavalitado na pega, não percebe o que anda a fazer aquele leão que anda a separar folhas para chá.

Às vezes, o chá não é bom (o que não é o caso do chá Leão) e, então, temos que beber o chá como quem agarra o touro à mão, pelo cachaço ou pelo lombo; às vezes, o chá está muito quente; e, então, utilizamos uma pega para segurar a chaleira quando vertemos o chá na nossa chávena que seguramos pela pega.

O gosto do chá acompanha-me pelo dia fora e sei que não vou sozinho.
 
 
 
 

Algures, em Londres, no Dia Internacional dos Direitos Humanos

(À procura de uns papéis, encontrei este escrito no verso de uma folha que reproduzia a Carta de D. Manuel para os Reis Católicos, o manuscrito com o original da Carta que, em 1501, D. Manuel enviou aos Reis Católicos descrevendo a viagem da frota de Pedro Álvares Cabral).

Numa rua de Londres, há alguém cabisbaixo, com a face escondida. Vemos apenas, daquele monte humano, uma parte dos pés – como uma estátua de um deus do Olimpo – onde ainda se conseguem entrever os pés ou parte deles – o que parecem umas pernas e um gorro onde está escrito “London”. “London” será, provavelmente, uma formação, que, inicialmente, humana, por vezes, não tem face; quer dizer, face tem, mas está escondida. Às vezes, a face encontra-se num daqueles muitos jardins privados cujas grades não conseguem conter o chilrear dos pássaros, mas, muitas vezes, a face está sentada na rua, encoberta, com um gorro ou um boné e uma mão estendida; e nós? Europeus co-titulares de um Prémio Nobel da Paz o que fazemos para que esta face não se mantenha encoberta?

terça-feira, 17 de setembro de 2013

“Et si les lendemains dansaient?”


Em homenagem ao dia de hoje que é ontem com roupas de amanhã

Neste dia que não parecia fadado para que se passasse grande coisa, por volta das 19h, saí para comprar pão: nestes 10 minutos de passeio, aconteceu-me tudo o que pode caber num dia. Amaldiçoei a chuva até ver o arco-íris; parei por uns minutos porque um arco-íris merece que se pare para vê-lo; fui até à padaria mas, ao ver a porta fechada, lembrei-me que era segunda-feira e estava fechada; contudo, se não tivesse ido até aí, não teria visto o arco-íris. Vi também uma rapariga que quase desaparecia por debaixo do seu guarda-chuva transparente, o que não deixa de ser interessante: alguém que se escondia por debaixo de algo transparente.

Depois, caminhei até à padaria mais próxima; no caminho, lembrei-me da minha desventura de hoje: cortei o meu cartão sim para adaptá-lo a um outro telefone e, desde então, o telefone indica que estou em “roaming”. Finalmente, um telefone que parece adaptar-se aos tempos que vivemos: mesmo estando no que deveria ser o seu país de origem, indica que está em “roaming”. Haverá custos associados? A talho de foice, digo também que me senti em “roaming”, na Madeira, há dias. Senti-me turista, em casa, e não gostei. Seria do chapéu de palhinha (mas ele tinha sido comprado na Rua de Santa Maria; pois, talvez nenhum madeirense compre chapéu de palhinha na Rua de Santa Maria; será como o peixe espada com banana?) ou de andar a saltitar do jardim do Museu Frederico de Freitas até ao Convento de Santa Clara?

Depois, quando voltava a casa, na rua Beethoven (e talvez não por acaso) vi um graffiti (acho que, talvez, o primeiro graffiti que vi neste bairro): “et si les lendemains dansaient” (e se os amanhãs dançassem); abriu-se-me um sorriso de ponta a ponta, escarlate, como a tinta do graffiti. Já estou em pulgas para amanhã (na verdade, hoje, dia em que escrevo). Como diria o José Duarte, na Antena 1, “A menina dança?”.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Ainda antes do café da manhã

Aviso à navegação: este texto deve ler-se ao som de "Apinajazz"


Ainda antes do café da manhã, em São Paulo, ouvimos a cidade a ser construída. Aquele barulho firme do martelo que modela a pedra, nesta cidade-de-pedra-e-esperança-de-um-amanhã-diferente.
 
Ouço também um apartamento que se põe bonito para os sorrisos que irá receber mais tarde.

Neste quarto de paredes brancas e memórias de cor, ouço também uma cidadania em movimento, que se põe bonita para os sorrisos que quer legar a quem virá depois. É uma cidadania que se constrói como o martelo que molda a pedra na cidade.

Ontem, ao chegar a esta megapole, vi, da mesa onde me sentava, uma luz suspensa do alto da cidade. Cuidar da cidadania e da nossa casa pode ser tão frágil e tão importante como cuidar dessa luz suspensa. Contudo, atenção, porque a cidadania, ao contrário da cor, não pode ser uma impressão que a luz reflectida pelos corpos produz no órgão da vista (ou sê-lo-á?).
Escrever este texto de uma rua com nome indígena faz todo o sentido.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

A luz a quem a procura

Hoje, de manhã, não sei se pela falta de luz no exterior, virei-me para a luz do interior. Cedo, encontrei uma Rapunzel às voltas, nas voltas da escadaria; depois, perdi-a de vista. À noite, quando já voltava a casa com luzes, no lugar de acender a luz, lá estava ela, como quem diz, a luz a quem a procura.

 

sábado, 4 de maio de 2013

Ouço a Modinha para Gabriela quando vejo a Afurada

Um abraço, Henrique!
 

O quarto ainda não acordou completamente da noite. Há silêncios e a luz enrola-se na cortina como a onda nos calhaus das praias das ilhas vulcânicas.

Ontem, soube do Henrique. O Henrique toca(va) trompa (e sem trompa(s) não há vida), teclado , flauta de bisel e outras coisas. Lembro-me de abrir os pesados livros de Direito na mesa branca da marquise da casa do Henrique e da Margarida, onde voavam os passarinhos. Os passarinhos ficavam à solta naquela marquise e depois voltavam a casa para descansar.

Partilhávamos refeições e ideias naquela mesa branca onde eu abria os livros pesados de Direito. Antes, a aparelhagem estava perto da marquise e eu gostava de pôr discos enquanto comíamos, como quase sem se ouvir, ouvindo, para acompanhar e não para interromper a conversa. Gostava particularmente da Modinha para Gabriela que ficou conhecida por causa da banda sonora da telenovela «Gabriela, Cravo e Canela»: « Quando eu vim para esse mundo/ eu não atinava em nada/Hoje eu sou Gabriela,/Gabriela iê, meus camaradas». Há tempos, soube que um casal amigo (e é bonito que um casal, no plural, possa ser amigo, no singular) do meu irmão teve uma menina a quem chamaram Gabriela. Agora, quando vir e ouvir esta Gabriela, lembrar-me-ei do Henrique e a vida é também prodigiosa por esta continuidade humana que nos oferece.

O Henrique, ainda há pouco, na última vez que o vi, falava-me de várzeas, porque eu e a minha família íamos subir o Douro ; abria, à minha frente, enciclopédias de Portugal para que eu me documentasse sobre os sítios por onde passaria. Depois, íamos a varanda ver Gaia e imaginar o Porto(gal).

 

O Henrique e a Margarida conduziram-me várias vezes ao porto do aeroporto, onde voamos e não nos espantamos, tão normal que é, hoje em dia, voar. O Henrique, apesar daquele véu nonchalant, mantinha em si a capacidade de se espantar e só quem tem traz o menino que é(ra), por dentro, e que ainda se consegue espantar com os olhos de adulto que carregamos.

 

Acabo de saber que a Elodie pode ligar-se à internet, neste primeiro dia do fim-de-semana. A internet liga-nos mas o Henrique liga(va)-se aos outros por outros meios : através dos seus puzzles (explicava-me que, primeiro, deveria seriar-se as peças por cores ou temas, e, depois, começar a aventura da construção, que, como a aventura da vida, também precisa de preparação).

 

Antes, o Henrique trabalhava na Foz, quase diante da Afurada. Eu gostava de ir até à Foz, perto de onde o Henrique trabalhava e apanhar o barco para ir até à Afurada. Chegar à Afurada de barco é uma descoberta que não acontece quando se chega de carro. Havia redes de pesca a secar e a serem remendadas (como, às vezes, se remenda a vida que nos vai (des)gastando) para que continuassem a trazer o peixe nosso de cada dia numa espécie de milagre dos peixes revisitado. Havia pessoas simples na Afurada e estórias amargas de vida que se escondiam nas casas exíguas das ruas pequeninas da Afurada (e quem viu o filme « Jaime » ou o ficção real da vida dos moradores da Afurada sabe do que falo). Eu sinto um apego especial pela Afurada e por todos aqueles que labutam por um amanhã melhor.

 

Lembro-me, uma vez, que já tinha ido a alguns espectáculos, durante a semana que estava a ficar em casa da Margarida e do Henrique, e, que, ainda assim, queria muito ir a um espectáculo no Auditório Municipal de Gaia. Queria mas não podia porque o dinheiro não é elástico. Ao jantar, falávamos dos planos para essa noite e mencionei, en passant, que queria muito ir ver este concerto mas que não podia. O Henrique prontificou-se a pagar-me o bilhete do espectáculo e apesar dos meus recuos (que não era assim tão importante e que poderia vê-la –não me consigo recordar o nome da artista portuguesa – numa outra oportunidade), o Henrique compreendeu imediatamente que aquele espectáculo, como a vida, são irrepetíveis. Quando cheguei ao Auditório Municipal de Gaia, apercebi-me que havia mais músicos em palco que espectadores. Tinha sido o primeiro dia europeu sem carros, no Porto, e as pessoas tinham, talvez, decidido ficar por casa. Era como se os músicos tocassem só para mim e para o Henrique que estava ali, sem ter vindo (e, isto, Margarida, acho que era o que te queria dizer e não pude, ao telefone).

 

Post-Scriptum: Um dia destes, meto-me a fazer aquele puzzle do Tomi Ungerer que tinha pensado, várias vezes, em enviar-te, Henrique.

sábado, 27 de abril de 2013

Conta Postal

Ele lembrava-se daquela manhã em que tinha ido aos correios para abrir uma conta postal (uma conta bancária sem a avidez dos bancos, pensava ele, e, talvez, com critérios menos apertados visto que ele vinha ali sem o sacrossanto contrato de trabalho em que parecemos não existir no mundo da maioria governado por uma minoria cooptada, apesar de não se saber muito bem como tal cooptação ocorreu): a senhora do banco (postal), cujo tom se alterara quando descobriu que ele não tinha um contrato de trabalho nem estudava (mas então o que faz, este (?), pensaria ela), sempre de costas direitas, como convém a um representante do banco (mesmo que postal) dizia que sim, que poderia abrir a conta mas que o cartão a ser entregue era um cartão “especial” (e ele já estava farto, desde que deixara de trabalhar por conta de outrem, que o seu nome fosse associado a essa palavra, “especial”: na verdade, especial significava ter casado – e, por isso, deixado o seu trabalho para que pudesse ir morar com a esposa no país onde ela trabalhava – e não saber muito bem quando poderia entrar na magnífica aventura de ter filhos porque o contrato a termo certo dela e a ausência de contrato e de termo dele não favoreciam entrar em aventuras). Tal cartão especial teria levantamentos especiais, com limites especiais, tudo nivelado por baixo e, quando tentava saber das razões de tanta especialidade, a resposta vinha embrulhada em papel de oferta: “mas o senhor não tem contrato de trabalho”.

O banco postal situava-se na avenida daquele mercado ao ar livre, onde ele gostava de ir. Aquele mercado onde a Europa se cruzava com o Magrebe: quanto mais se aproximava dos “stands” europeus, mais os preços se afastavam do Magrebe.

Ele gostava também do vendedor chinês, a quem comprava carne já pronta com legumes e recebia sempre um sorriso como troco. O que não gostava nada era a culpa que, na Madeira - donde ele vinha - se atribuía aos chineses. Os chineses que só empregam chineses, que vêm para aqui sem pagar impostos durante cinco anos. O que ele pensava era que não eram os chineses que aqui estavam em questão, o que estava em questão eramos nós próprios, a nossa capacidade, ou falta dela, de re-criar um país, imaginar e implementar uma Europa aberta, aberta porque solidária (Schengen é bom para quem já lá está, como o capitalismo é bom para os vencedores) e fazer da rua o lugar mais democrático de todos, como aquele dia em que a rua entrara na Assembleia através de uma canção, que, na letra, falava de uma “terra da fraternidade”: não uma terra ilusória, utópica (mesmo que tenha sido um português a chegar à Utopia de Thomas More), mas uma terra de esperança, hic et nunc, e, porque não (?), num país onde se volta a cantar na rua.

E lembrava-se bem daquele filme francês, “L’emploi du temps” (o título em inglês também lhe parecera revelador “Time Out”) em que o marido saia de casa, vestido para ir trabalhar mas sem trabalho e esperava o dia todo para que pudesse regressar; tinha pejo em dizer a alguém que tinha perdido o trabalho.
Não era isto que ele queria para o seu país, nem para a sua casa europeia, nem para a vizinhança da sua casa. O que ele queria era desenvolvimento, sim, mas um desenvolvimento de rosto humano. Os cidadãos europeus pareciam estar à altura; e a Europa?

sábado, 20 de abril de 2013

Conversas de futuro que nascem numa padaria


Andava a matutar há já uns dias onde é que haveria uma padaria perto do apartamento onde agora estou a ficar, em Tbilisi. Há um pão ázimo que é muito conhecido por aqui, e, o que é ainda mais importante, é bom!

Há bossa nova na rádio (há sempre bossa nova na rádio mesmo quando eu não escuto rádio) e olho para um pátio onde em dias de sol – como não é o de hoje – convergem as famílias que não vivem nas fachadas dos edifícios. Na verdade, em Tbilisi, isso é mais ou menos democrático: quem vive na fachada do edifício, vive também nas traseiras do mesmo. Há basquetebol e jogos de cartas (o que eu gosto de jogos de cartas e das coisas que se dizem enquanto jogamos cartas que nos passam pelas mãos como pensamentos pela cabeça). Da secretária onde escrevo, vejo este pátio, agora esvaziado pela chuva. Tenho, por sobre a mesa, flores de olor forte, como (es)cravos em mês de Abril, e não me canso de olhar para arquitecturas antinómicas que se avizinham.

O que é importante é que descobri uma padaria onde há pão ázimo, um pão que, no meu imaginário, se associa ao Afeganistão, com um “ovo para molhar”, pela manhã, feito pelo nosso cozinheiro Afegão do Paquistão.

Não sabia como dizer pão em georgiano pelo que depois de tê-lo dito em inglês, disse-o em russo. A senhora do balcão percebeu-o. Disse que sim e que estava lá atrás. Eu pedi um pequeno porque nunca se sabe como será mas, aqui, não deveria ter duvidado: havia clientela à porta e uma furgoneta com trabalhadores à espera para saciar o apetite da manhã de trabalho.

(O prato do pão estava vazio e lá fui eu em mais uma viagem até à cozinha porque não se pode escrever verdadeiramente sobre pão sem prová-lo).

Por alguma razão, foi o patrão que me trouxe o pão (e a palavra pão cabe na palavra patrão), num saco azul de mar, como se ele adivinhasse todas as estórias que cabiam neste pão. Tentei perguntar como se dizia pão em georgiano mas não fui bem sucedido. (O prato do pão está vazio, novamente, será que o texto já vai muito alongado?).

Ele disse-me, então, que entrasse nesta padaria de 2 divisões e mostrou-me o forno. O forno não é na parede como estou habituado; é no chão, como no deserto. Tentei falar-lhe do Sahara e de como, aí, também se faz esse mesmo pão (ou mais ou menos) da mesma maneira (ou mais ou menos), onde se cavam buracos na areia e se usa excremento de camelo como combustível. Ele não percebeu a palavra “Sahara”, talvez aqui se diga de outra maneira mas, agora, já tenho um pretexto para futuras conversas.

domingo, 31 de março de 2013

O chapéu da rapariga com sapatos de rapaz


Hoje, vi através desse ecrã por onde nos entra o mundo pela sala de jantar, uma rapariga com sapatos de rapaz a tirar o chapéu quando cumprimentava alguém que respeitava. Confesso que gostei de ver que, ainda hoje, há pessoas às quais se é de lhes tirar o chapéu.

Não consegui deixar de lembrar-me daquela imagem do bengaleiro, à entrada do Conselho de Ministros, quando o Presidente do Conselho era Salazar, onde os chapéus dos diferentes Ministros repousavam. O chapéu da rapariga com sapatos de rapaz até poderia ter algo que ver, em textura e materiais, com estes outros chapéus de Ministro mas o que certamente os diferenciava era o que tais chapéus traziam por dentro.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Edifícios de onde sai música


Hoje, conheci a Nini. Nini escrito ao contrário significa “in, in”, alguém aberto aos outros porque ninguém pode viver isolado, todos vivemos “entre milagres”. Nini tem cabelo curto, olhos de Primavera e estuda desenho gráfico industrial. Nini guiou-me, primeiro, à biblioteca da Academia de Artes de Tbilisi, um bonito edifício Art Déco, ligado por corredores e escadas que descem e sobem, a um outro edifício. Passámos por uma varanda de madeira – e que bonitos trabalhos de madeira há, em Tbilisi… - que range quando passamos por ela, bem como rangem os nossos olhos quando vemos a bonita árvore em flor que se encontra no pátio da Academia. Havia uma demonstração de artesanato turco, desde filigrana até à bonita pintura oriental. Quando procurava o edifício, passei por um outro donde saia música como saiam flores dos seios da avó da pequena Marjane Satrapi, em “Persépolis”, quando ela se despia. Será que nos portaríamos melhor como humanidade se de todos os edifícios saísse música? De que estamos então à espera? Aos bandolins, companheiros!

terça-feira, 19 de março de 2013

O quilo de laranjas da Geórgia


Hoje, estive num café-restaurante, em Tbilisi, onde via a “beautiful people” passar e sentar-se para um café que custava o mesmo que uma refeição num outro. As grandes janelas que deixavam entrar toda aquela luz, mediterrânica, que também banhava as cerejeiras e outras árvores em flor de Tbilisi.

De repente, uma senhora de cabelos brancos e sacola colorida apareceu à porta; não entrou porque não fazia parte daquele círculo; numa mão, uma laranja luzidia e com os três dedos que restavam indicava o preço. Por momentos, não lhe vi a face mas toda aquela luz que entrava por aquelas amplas janelas, desenhava-lhe, ainda mais, uma cara mais sorridente ainda que invisível.

Eu, no espaço de dentro, dos incluídos, dos que puderam abrir a porta assisti àquele espectáculo e só me apetecia era comprar aquele quilo de laranjas.

Por dentro, no espaço de livros, que era também este café e restaurante não havia estória tão bonita como a daquela senhora de cabelos neutros, à espera de serem esticados e cerzidos numa história, a história do quilo de laranjas que ficou por contar.

Mais tarde, no passeio largo de uma avenida larga, vejo uma senhora, já de idade, com um capote, que me lembra Gogol, a dobrar toda a espinha para chegar ao chão e levantar uma moeda que de pouco valeria. Quantas moedas de 1, 2, 5, 10 cêntimos de euro ficaram por juntar nos passeios (largos ou estreitos) da União Europeia?

domingo, 17 de março de 2013

Em Tbilisi

O que eu sei é que quando cheguei ao aeroporto de Tbilisi, já cansado, vi aquela rapariga a correr, (es)voa(ça)ndo por entre barras e cores, olhos desconhecidos e cascóis de seda (ou não) para abraçar a família. Quem abraça assim não é gago certamente e um abraço fala assim.
 
Hoje à noite, em Tbilisi, há um casal que não dorme porque arrendou o espaço de uma pequena pensão para subarrendar os 4 quartos e não tem dinheiro suficiente para empregar mais alguém. A recepção da pensão, por definição, deve funcionar 24 horas por dia e o casal, por definição, também.
 
 

segunda-feira, 4 de março de 2013

Uma estrela (de Carnaval)

Ao lado de uma estrela escarlate, ha, por vezes, uma bolha imaginaria presa a um ramo de uma arvore de Natal que se travestiu para o Carnaval.

P.S.: por vezes, a vontade de comunicar e mais importante que os acentos.

 

"Lá fora, amô, nosso barco partiu"

Chico Buarque e Carminho cantavam isto numa ponte entre Portugal e Brasil, com todos os barcos, no fluxo e refluxo, que cabem pelo meio, e, com atenção, ainda se entreviam os índios, não de Caminha nem de Alencar mas de Machado de Assis, PortinariLaymert Garcia dos Santos, os da terra vermelha, vivos, verdadeiros, de carne e osso.

 
 

Deste lado das nuvens, onde (a) gente mora


Hoje, de manhã, com o chão da cozinha banhado pelo sol que lá entrava, ouvia Sinais. Falava das nuvens e da proximidade de voar e orar (a palavra orar, como voar, contêm já a palavra ar). Falava-se das nuvens e de quando se está acima das nuvens e, eu, que continuava com a cabeça acima delas, cortava em dois a maça com o desejo do batido que me abriria a manhã (uma manhã-maçã).

Mas, logo a seguir, caía das nuvens, ao ouvir que, em Espanha, se chegaria, pela primeira vez, aos cinco milhões de desempregados. Não sei se, lá, nas nuvens, há emprego (ou falta dele) – exceptuando, claro, os homens e mulheres que trabalham nas companhias de aviação, em missões espa(/e)ciais, e, evidentemente, no domínio das artes (haverá um domínio nas artes, ao lado do domínio das artes (?), talvez – mas, quanto a mim, gosto de estar com a cabeça nas nuvens mas com os pés fincados deste lado das nuvens: é aqui que (a) gente mora.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Crónicas de um país em guerra, II


O que era estranho não era haver uma imagem de uma baguete na reportagem da Agence France Presse; o que era estranho era o contexto: aquela baguete, esse substantivo feminino que amolece corações como se amolece estômagos, posicionada como um míssil de longo alcance (apesar deste míssil não matar ninguém, apenas a fome), encimava um monte de provisões que esperava por ser cuidadosamente acondicionado no blindado que seguiria para o Norte (do Mali); a ajuda veio do Norte para o Sul para que se pudesse combater a Norte evitando perigos ao Sul, que se propagariam a Norte.

Entre caixas de munições, mochilas com o essencial para sobreviver, rádios e sonhos de estabilidade e unidade, havia aquela baguete. Apontaria também ela para o Norte?

Minutos antes, via Daniel Cohn-Bendit discursar, no Parlamento Europeu, perante a Alta Representante da União (?) [Europeia] para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança; ele dizia que falamos em “nós” mas são as tropas francesas que estão no terreno; que “nós” vamos enviar os enfermeiros para cuidar dos feridos enquanto os franceses, sozinhos, estarão apeados, no Norte (ou a caminho do Norte). A Alta Representante tomava notas enquanto olhava, de quando em vez, para Cohn-Bendit. Será que essas notas apontariam também para Norte?

A baguete, fresca, com rasgos de padeiro, apontava, certamente, para Norte. A dificuldade é saber quem e o que regressará do Norte.

Crónicas de um país em guerra, I


Hoje, é terça-feira, dia de mercado. De manhã, nevava, mais e mais. Agora, parou. Os carros ainda mostram que nevou e que, provavelmente, voltará a nevar.

Hoje, não é um dia como os outros. Escrevo de um país em guerra, em guerra desde sexta-feira (não, não me parece que tenha sido sexta-feira santa). Houve, talvez, um negrume no céu como os lenços que, no imaginário colectivo estrangeiro, as mulheres portuguesas ainda usam para cobrir a cabeça.

O aviãozinho de madeira que trouxe do mercado modelo (e, por conseguinte, um avião modelo) de Salvador, adquire toda uma outra dimensão desde sexta-feira.


Olho para a fotografia e vejo que está ao lado de um “pin” onde se inscreve “osez la tendresse”, que tem uma bota de viloa como se fosse a Sicília e tapa um gato japonês que tem a pata direita levantada (será sorte ou dinheiro? Nunca sei.). Mais abaixo - e penso que será de difícil leitura - há um São José que perdeu a cabeça e deixou o presépio (agora, Maria e o Menino Jesus formam uma família monoparental). Mais à direita (como na Europa) há um “pin” onde se lê “Mission Possible” e que, de quando em vez, me encima os bolsos dos casacos, quando ainda não há frio de Inverno como hoje.

Já quase a fugir da imagem há uma estrela da Cidade do Cabo, para onde nos guiará? Parece que para as “Wild Things Africa”.

Admito que tive que me levantar para ver que aquele selo que quase não se vê (como nos correios, onde os selos quase já não se vêem) é da Tunísia e mostra o anis verde, uma erva doce.

O “pin” do barrete de vilão está vazio; talvez procure a cabeça de São José. A chave do avião, essa, continuará por ali numa luta desenfreada entre o São José que perdeu a cabeça e a bota de viola como se fosse a Sicília.

Hoje, é terça-feira, de um país em guerra, desde a minha secretária.

(Aviso à navegação: apesar de ter tentado várias vezes, não me foi possível adicionar a fotografia de que vos falo ao texto; o espaço outrora ocupado por imagens, é agora ocupado por um vazio: será isso a metáfora da guerra?).