sábado, 4 de maio de 2013

Ouço a Modinha para Gabriela quando vejo a Afurada

Um abraço, Henrique!
 

O quarto ainda não acordou completamente da noite. Há silêncios e a luz enrola-se na cortina como a onda nos calhaus das praias das ilhas vulcânicas.

Ontem, soube do Henrique. O Henrique toca(va) trompa (e sem trompa(s) não há vida), teclado , flauta de bisel e outras coisas. Lembro-me de abrir os pesados livros de Direito na mesa branca da marquise da casa do Henrique e da Margarida, onde voavam os passarinhos. Os passarinhos ficavam à solta naquela marquise e depois voltavam a casa para descansar.

Partilhávamos refeições e ideias naquela mesa branca onde eu abria os livros pesados de Direito. Antes, a aparelhagem estava perto da marquise e eu gostava de pôr discos enquanto comíamos, como quase sem se ouvir, ouvindo, para acompanhar e não para interromper a conversa. Gostava particularmente da Modinha para Gabriela que ficou conhecida por causa da banda sonora da telenovela «Gabriela, Cravo e Canela»: « Quando eu vim para esse mundo/ eu não atinava em nada/Hoje eu sou Gabriela,/Gabriela iê, meus camaradas». Há tempos, soube que um casal amigo (e é bonito que um casal, no plural, possa ser amigo, no singular) do meu irmão teve uma menina a quem chamaram Gabriela. Agora, quando vir e ouvir esta Gabriela, lembrar-me-ei do Henrique e a vida é também prodigiosa por esta continuidade humana que nos oferece.

O Henrique, ainda há pouco, na última vez que o vi, falava-me de várzeas, porque eu e a minha família íamos subir o Douro ; abria, à minha frente, enciclopédias de Portugal para que eu me documentasse sobre os sítios por onde passaria. Depois, íamos a varanda ver Gaia e imaginar o Porto(gal).

 

O Henrique e a Margarida conduziram-me várias vezes ao porto do aeroporto, onde voamos e não nos espantamos, tão normal que é, hoje em dia, voar. O Henrique, apesar daquele véu nonchalant, mantinha em si a capacidade de se espantar e só quem tem traz o menino que é(ra), por dentro, e que ainda se consegue espantar com os olhos de adulto que carregamos.

 

Acabo de saber que a Elodie pode ligar-se à internet, neste primeiro dia do fim-de-semana. A internet liga-nos mas o Henrique liga(va)-se aos outros por outros meios : através dos seus puzzles (explicava-me que, primeiro, deveria seriar-se as peças por cores ou temas, e, depois, começar a aventura da construção, que, como a aventura da vida, também precisa de preparação).

 

Antes, o Henrique trabalhava na Foz, quase diante da Afurada. Eu gostava de ir até à Foz, perto de onde o Henrique trabalhava e apanhar o barco para ir até à Afurada. Chegar à Afurada de barco é uma descoberta que não acontece quando se chega de carro. Havia redes de pesca a secar e a serem remendadas (como, às vezes, se remenda a vida que nos vai (des)gastando) para que continuassem a trazer o peixe nosso de cada dia numa espécie de milagre dos peixes revisitado. Havia pessoas simples na Afurada e estórias amargas de vida que se escondiam nas casas exíguas das ruas pequeninas da Afurada (e quem viu o filme « Jaime » ou o ficção real da vida dos moradores da Afurada sabe do que falo). Eu sinto um apego especial pela Afurada e por todos aqueles que labutam por um amanhã melhor.

 

Lembro-me, uma vez, que já tinha ido a alguns espectáculos, durante a semana que estava a ficar em casa da Margarida e do Henrique, e, que, ainda assim, queria muito ir a um espectáculo no Auditório Municipal de Gaia. Queria mas não podia porque o dinheiro não é elástico. Ao jantar, falávamos dos planos para essa noite e mencionei, en passant, que queria muito ir ver este concerto mas que não podia. O Henrique prontificou-se a pagar-me o bilhete do espectáculo e apesar dos meus recuos (que não era assim tão importante e que poderia vê-la –não me consigo recordar o nome da artista portuguesa – numa outra oportunidade), o Henrique compreendeu imediatamente que aquele espectáculo, como a vida, são irrepetíveis. Quando cheguei ao Auditório Municipal de Gaia, apercebi-me que havia mais músicos em palco que espectadores. Tinha sido o primeiro dia europeu sem carros, no Porto, e as pessoas tinham, talvez, decidido ficar por casa. Era como se os músicos tocassem só para mim e para o Henrique que estava ali, sem ter vindo (e, isto, Margarida, acho que era o que te queria dizer e não pude, ao telefone).

 

Post-Scriptum: Um dia destes, meto-me a fazer aquele puzzle do Tomi Ungerer que tinha pensado, várias vezes, em enviar-te, Henrique.