segunda-feira, 21 de novembro de 2011

António e o meu novo nome

Relembrei-me que António Zambujo[1] ia tocar no bairro do Neuhof, no dia em que fui ao consulado português para incorporar, no meu nome, o meu novo projecto de vida; e o meu novo apelido aconchegou-se entre os apelidos dos meus dois avós. Quanto ao António, viria a ouvi-lo alguns dias mais tarde no bairro dito problemático e donde vem, por exemplo, Abd al Malik[2] (que escreveu o livro “La guerre des banlieues n’aura pas lieu”[3]). António parecia saber da importância do bairro e vestiu fato escuro e gravata da moda para o saudar.
Ao entrar na sala de madeira, vi um contrabaixo estendido no chão e pareceu-me, logo à partida, um bom sinal. Havia um trio, uma outra “troika”, que dava o mote: um fadista com a sua guitarra, um tocador de guitarra portuguesa e um contrabaixista. Um contrabaixo é algo de inusitado no fado e, contudo, fazia todo o sentido; como fazia também o saxofone alto e o clarinete que espreitavam as canções, aveludando-as quando necessário.

No final do concerto, pensei que António Zambujo tinha conseguido devolver o sorriso do sul, do sul que merece o sorriso, ao fado. O concerto começou com um foco de luz – e que bonito o desenho de luz, uma composição musical em si mesmo – sobre o António a afinar a guitarra e a dizer que a primeira música seria experimental; e experimental foi todo o concerto.  

António, conhecedor como é do fado, convidou Jon Luz, o cabo-verdiano que toca cavaquinho, e deleitou-nos com uma morna que era fado com raminhos de bossa nova; e a morna nova inundava aquela sala escura, cuja luz nos abraçava.

António cantou “Queria ser teu namorado,/Morar dentro dos teus olhos” e eu só me lembrava do meu novo nome que mora dentro de mim; ao contrário do que a letra da canção rezava, eu não queria abrandar a dança nem descansar até ao fim.


[2] http://www.abdalmalik.fr/ ; v. entrevista a Abd al Malik aqui: http://www.strastv.com/catalogue/Watch/abd-al-malik-au-neuhof.html

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

“O risco maior é manter o silêncio”


“O risco maior é manter o silêncio”[1]

José Rodrigues dos Santos, numa entrevista, hoje, ao Telejornal das 20h, no canal 1 da RTP, ao Primeiro-Ministro Português sobre a sua visita a Angola não lhe fez uma única pergunta relacionada com a falta de legitimidade democrática do regime angolano e da maneira como o Primeiro-Ministro Português parece querer alavancar um renascimento da economia portuguesa na “economia do saque”[2] angolano.  Sobre estas e outras estórias de Angola recomendo a entrevista ao jornalista angolano Rafael Marques por Mário Crespo: http://www.youtube.com/watch?v=f8ElN-pBC2k . Rafael Marques refere, dentre outras coisas, que “Portugal tornou-se uma lavandaria para o produto de saque feito em Angola”.

Hoje, assisti a uma cena de uma tristeza imensa, aquando da entrevista de José Rodrigues dos Santos a Passos Coelho, onde o silêncio do jornalista sobre estas questões fundamentais era lancinante. Infelizmente, este tratamento subserviente a um regime angolano que não respeita o seu povo tem sido transversal aos diferentes governos portugueses no poder. Um Estado que se conduz assim já morreu mesmo que ainda subsista financeiramente. Agora há que reinventá-lo.

A dado momento da entrevista a Rafael Marques, fala-se de uma possível sucessão de José Eduardo dos Santos pelo Presidente da Sonangol, Manuel Vicente. Rafael Marques declina qualquer possibilidade de mudança de regime com esta possível transição e, para quem ainda tenha dúvidas, recomendo a leitura do seguinte artigo[3] que refere que Manuel Vicente é também o Presidente de uma “joint venture” chamada China Sonangol, a quem cabe, desde 2005, a exportação do petróleo de Angola para a China, i.e., o Presidente da única empresa pública angolana que tem “o poder e o direito de autorizar o exercício de actividades de exploração e produção de hidrocarbonetos em território Angolano, quer em terra quer em alto-mar”[4] é também o Presidente de uma entidade de direito privado que medeia o negócio de compra e venda de quase todo o petróleo de Angola à China, que, alegadamente, compra com valores de 2005 e vende a valores de mercado com um valor estimado em cerca de US$ 20 mil milhões, apenas o ano passado[5].

O que é ainda mais grave é que não é só o dinheiro que não chega à população de Angola mas são as alegações de que este dinheiro destina-se também a favorecer certos homens políticos e, por conseguinte, a alimentar conflitos como os da Guiné Conacri, onde, em Setembro de 2009, homens ligados ao Governo estiveram por detrás de violações em massa e da morte de 150 manifestantes num estádio[6]; um mês depois de tal evento a referida “joint venture” transfere para a pecuniariamente moribunda junta, devido a sanções da UE e da União Africana, um montante de US$ 100 milhões a troco de um negócio com minério.

É este o dinheiro que queremos a salvar Portugal? Ou será tempo de nos descolonizarmos?


[1] Frase proferida por Rafael Marques na citada entrevista ao jornalista Mário Crespo.
[2] Ibidem
[3] http://www.economist.com/node/21525847 consultado a 18 de Novembro de 2011 às 00:20.
[5] v. nota de rodapé 3.
[6] Ibidem

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Futebol: um jogo de gente grande?

O Qatar é o país onde decorrerá o Campeonato do Mundo de Futebol em 2022. Representantes da “International Trade Union Confederation (ITUC)”[1] chamam a atenção para o impacto negativo que esta decisão poderá ter nos trabalhadores - num país onde a grande maioria dos trabalhadores são imigrantes - se os seus direitos continuarem a não ser respeitados[2]. Sharan Burrow, a Secretária Geral da ITUC apelida as condições que os trabalhadores migrantes no Qatar enfrentam de uma “existência miserável”. Sharan reunir-se-á em breve com representantes da FIFA e dos adeptos de futebol para discutir a selecção do Qatar para a organização de tal evento; a ITUC propugna que a realização de tal evento seja condicionada ao respeito, pelas autoridades do Qatar, das condições de trabalho exigidas pela Organização Internacional do Trabalho; caso contrário, a ITUC promoverá uma campanha internacional contra a realização do campeonato do mundo de futebol no Qatar. O que dirá a FIFA? Talvez ainda mais importante: o que dirão os adeptos de futebol? Haverá lugar a Primaveras no futebol?

A relatora especial da ONU para o direito à habitação condigna, a brasileira Raquel Rolnik, apelida a FIFA de organização internacional desprovida de muito pouco respeito a qualquer tipo de consideração ou direito e uma estrutura extremamente corrupta. Ela pede que a organização do Campeonato do Mundo de Futebol de 2014 no Rio de Janeiro seja usada para “crescer [n]os direitos de cidadania” e isso seria também necessário para tornar o Brasil [um país de] "gente grande”[3]. A mim, parece-me que isso seria também necessário para tornar a FIFA uma organização de gente grande.
Há dias, o jogo de Portugal contra a Bósnia deixou-me um travo agridoce na boca. Apesar de alertado para não o fazer, um grande número de adeptos portugueses assobiou durante o hino da Bósnia – o mesmo hino que tem vindo a provocar celeuma visto a sua letra não mencionar nem as duas entidades federais nem todas as etnias que habitam a Federação da Bósnia Herzegovina e que finaliza a sua letra com “we are going into the future together”[4]. Seguramente, quem assobia perante um hino doutro país não está preparado para desbravar um futuro acompanhado por outros. O futebol será certamente um jogo de gente grande mas é preciso prová-lo.


[2] Actualmente há salários medíocres, condições de trabalho que não estão de acordo com as mais básicas normas de segurança e locais de trabalho que são prisões a céu aberto pois os documentos dos trabalhadores imigrantes são, por vezes, confiscados.
[3] http://www.ituc-csi.org/raquel-rolnik-un-rapporteur-on.html?lang=en consultado a 17 de Novembro de 2011 a 12:12.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A cada um a sua Cruz

A “Jeune Afrique”[i] refere que o Arcebispo de Kinshasa questiona-se sobre como será possível eleger governantes que não nos dão garantias, dentre outras coisas, de amor ao povo. Foi precisamente isso que pensei, ontem, ao ouvir as declarações da Ministra Paula Teixeira da Cruz sobre os guardas prisionais - "guardas que, enquanto descansam, estão a receber" [horas extraordinárias][ii]. Como é possível servir o povo, sendo, por isso, seu ministro, sem respeitá-lo? Tenho para mim que a responsabilidade de um ministro (ou ministra) é esclarecer estas situações e propor soluções; ser parte da solução e não do problema.
Contudo, talvez não me devesse ter surpreendido pois, há pouco tempo, li que o último espécimen de Amor “não suportou a rigidez dos tempos em que vivemos” e sofreu uma paragem cardíaca fulminante[iii]. E o povo, pá?


segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Máscaras Venezianas I

Nós estivemos na Bienal. Sentimos que devíamos comer antes de filosofar e fomos à Trattoria. No restaurante, deixei cair três gotas de vinho ao servi-lo; as três gotas, como cachorros ainda sem os olhos abertos que procuram o calor do colo materno, pareciam caminhar em direcção à garrafa. E nós, não procuraríamos o mesmo de outra maneira?

domingo, 6 de novembro de 2011

Estranha forma de vida

 O primeiro pássaro no alcatrão levou-me do Funchal a Lisboa e chama-se "Amália Rodrigues".
O segundo pássaro no alcatrão foi visto desde a janela da nossa cozinha, na manhã seguinte ao meu regresso a Estrasburgo. Não sei o seu nome.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Os escritórios não protegidos da rua

Dedicado a todos aqueles que, corajosamente, fazem da rua o seu poiso

O senhor do raspa[1], o Benjamim, foi encontrado morto[2]. O senhor do raspa era o senhor que, durante anos e anos, instalou o seu escritório – leia-se o seu banco e a sua mesinha – na rua de João Tavira. O chão do seu escritório era de calçada portuguesa e as paredes eram invisíveis como os muros da sociedade em que vivemos; a porta, essa, estava sempre aberta. Os raspas estavam alinhados numa ordem desconhecida. A seu lado, normalmente, havia uma companhia feminina – ao ler a notícia sobre a sua morte, descubro que era a sua mãe. Eram pessoas que conheciam o escritório não protegido da rua.

Lembrei-me que conheço outras pessoas que também povoam escritórios não protegidos da rua e quis relembrá-los aqui. A senhora da marcela da rua Fernão Ornelas e, aos sábados, do mercado. Há dias, ouvia-a na televisão a dizer que o marido planta marcela e ela vende-a para arredondar os finais de mês. Pareceu-me bonito este fordismo sentimental.


Lembro-me também das senhoras da casa de bordados da mesma rua Fernão Ornelas que vão gastando a vista e as costas no início da escadaria que eu nunca subi e do senhor da rua da Boa Viagem que vende meias e ideias. Não me esqueço também do acordeonista cego que toca e canta na ponte do Bazar do Povo; já há muito tempo que não o ouço porque ver, como ele, vejo-o sempre mesmo que ele lá não esteja. A estes e a muitos outros, quando puder, voltarei a bater à porta in-existente do vosso escritório. O artigo já mencionado dizia que Benjamim vendia sonhos; e, agora, quem os venderá?

Nota Bene: Não me sai da cabeça a colocação de uma lápide, onde Benjamim vendia os raspas, com os dizeres: aqui vendeu Benjamim, com sua mãe, sonhos.


[1] O raspa é conhecido, em Portugal Continental, como raspadinha.
[2] v. http://www.dnoticias.pt/impressa/diario/289745/casos-do-dia/289859-vendedor-de-raspas-encontrado-morto (só para assinantes).

O concerto silencioso (da vida) no comboio para Basileia

Ontem, na cadeira do outro lado do corredor do comboio para Basileia, havia um senhor cujas mãos esvoaçavam, em frente a uma partitura. Pareceu-me um músico - será um maestro? –que devia tocar - ou dirigir – (n)a Orquestra de Basileia. Que bonito era aquele concerto silencioso. Os gestos pareciam-me, às vezes, de violino e, às vezes, de violoncelo; eram gestos loquazes, delicados mas precisos; gestos que demonstram carácter, certamente. No silêncio do comboio, retirei os auscultadores do meu leitor de música para poder escutar este concerto in-audível. Eu saí em Offenburg, a "cidade aberta" para o meu concerto silencioso da vida.