segunda-feira, 3 de julho de 2023

Abraçaram-se como uma lágrima

 

Há dias cheguei a casa e passava no canal Arte um filme que nunca tinha visto, Mademoiselle Chambon, com Vincent Lindon e Sandrine Kiberlain. O amor começou com um complemento de objeto direto quando ainda nem se sabia que aquele sentimento já existia. Depois, houve um «Je pense à vous. Jean» (Eu penso em si. Jean), que estava escrito em dois níveis do papel dobrado. Numa linha, o pensamento; na outra, ele. Jean era casado e a Mademoiselle Chabon a professora do seu filho. Depois, foi uma janela que tinha de ser mudada na casa dela e ele era maçon. Ele percebeu que ela tocava violino. Ela não queria tocar na presença de outrem. Ele insistiu. Ela tocou de costas. Ele ouviu. Sentaram-se, um ao lado do outro e ouviram um disco. A mão na mão. A mão no rosto. O rosto na mão. O lábio nos lábios. Abraçaram-se como uma lágrima: doía e era bom. No dia seguinte, era dia de partida, mas ainda não se sabia como seria esse dia. Era um amor (im)possível: vinham de mundos diferentes, de mundos que não estavam predestinados a interagir, pelo menos não assim.

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Jean qui attend


J’ai fait la connaissance de Jean, qui vend des calendriers. Il m’a dit qu’il ne les avait plus. J’en suis sûr qu’il en a encore, je lui ai répondu. Jean qui attend m'a dit qu’il ne le sait pas. Peut-être dans deux semaines. J’ai le temps (mais pas le calendrier, pour le moment).

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

PEQUENO camponês


Na padaria, hoje de manhã

Fui comprar o pão (nosso de cada dia) e havia uma senhora em formação, na padaria, o que é bom sinal. Indica que haverá continuidade em assegurar o nosso sustento. Comprei um croissant que é feito a partir de uma mistura de margarina e manteiga e o pão camponês (pain paysan), que é feito a partir de uma mistura de farinha branca e de centeio (para saber mais sobre o centeio e o seu ondular, veja-se aqui).

Apercebi-me que ela estava em formação porque, quando se tratava de embrulhar o pão (da padaria e quase meu), colocou-o numa folha de papel branca, baça e perguntou à patroa como é que o enrolava. Depois das instruções dadas, e das bochechas da formanda já se tornarem escarlates, vi o pão dar três ou quatro voltas à minha frente sendo guiado por aquelas mãos sapientes, ainda que em formação, de padaria segurando tão só e apenas na folha de papel branca, baça. A patroa, com os seus óculos com grandes aros dourados, virou-se para mim e disse com um sorriso: “c’est le coup de main” (é a destreza manual). Esta destreza manual remete-me para outros lugares e tempos onde, em cozinhas escuras, se amassava, benzia (quem é que ainda se lembrará da reza?) tendia e colocava o pão-que-ia--ser no forno a lenha junto a um raminho de alecrim.

Com aquele “jeitinho” que se dá ao pão para embrulhá-lo, o pão fica, quase envergonhado, a entreolhar-nos pelos intervalos da folha de papel branca, baça. Talvez seja esse jeitinho que nos ajude a encontrar companheiros por aí, i.e. aqueles com que compartilhamos o pão (cum, panis).

Na altura do pagamento, a formanda teve dificuldade em encontrar, naquele ecrã de mar morto, o pão camponês. A patroa, sempre ao seu lado, disse na categoria “especiais”, “pequeno camponês” (petit paysan); efectivamente, com esta agricultura por demais intensiva (e por demais tudo) e que é predadora do ambiente e, por conseguinte, da nossa saúde, o pequeno camponês é com certeza alguém de especial, que, se não acordarmos a tempo, será devorado como devoraremos aqui em casa aquele suculento pão camponês que cheira a sol(o).

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

“déjeuner sur [ou sans] herbe” post-moderno

Ela usava um vestido estampado de flores que lhe deixava os ombros descobertos (achados?), como sabe bem no Verão. Estou muito longe – e os meus conhecimentos de botânica deveriam ser certamente aperfeiçoados - para perceber que flores são. Ela escrevinha num papel enquanto, bem ou mal, vai segurando o telefone entre o ouvido – que vai trocando – e a mão que não segura na caneta. “Oui”, “ok” vão, de quando em vez, entrecortando o que o interlocutor lhe vai dizendo. Poderia ser uma pintura, um “déjeuner sur l’herbe” post-moderno em que ela estava sozinha, com o almoço que comprara à pressa para levar e sem quase ter tempo de levantar os olhos para apreciar o lugar onde estava; talvez um “déjeuner sans herbe”.  O bulício não parava; não podia parar. Num movimento irreflectido, olho para a porta, e, nesse mesmo momento, entra uma rapariga com um véu, uma outra personagem para o “déjeuner sur [ou sans] herbe” post-moderno? 



v. Into the Fashion INSPIRATION Édouard Manet 1863... Pablo Picasso 1960. 

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Vulnerabilidade superficial e a moral da história

Hoje, cortei-me, uma ferida superficial, ao cortar um fruto que se diz legume, um tomate. Cortei-me na mão esquerda, onde se (diz que se) lê o futuro. Parece-me que não foi na linha da vida, e, desse ponto de vista, estou (as)segurado.

Quando conduzia, na auto-estrada, a ouvir os Mutrama, e andava na minha "pensação" de menino, vi as costas de um camião onde estava escrito "Mehr Licht", as últimas palavras de Goethe. Pareceu-me apropriado ao CD que ouvia. 

Andei a poupar nestas férias uma moeda eslovena de €1, que nunca tinha visto, com um desenho que me parecia - só parecia porque certamente não era - uma cruz de Lorena. Hoje, depois de todas as peripécias para não gastar essa moeda de €1, recebi uma moeda de €2 com o mesmo desenho. Deixo ao vosso escrutínio a moral da história. 

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Que sombras deixaremos depois de partir?

No lugar onde se sentava a senhora que virava textos em folhas (se fossem pautas de música seria uma "torneuse de page") agora vê-se a sombra negra de plantas verdes.

Que sombras deixaremos depois de partir? 

A colaboradora n. 390898 de olhos azul afegão

Vim ao IKEA (bibliothèques obligent). Acabei por almoçar aqui. A senhora - colaboradora n. 390898, diz-me o recibo - que me serviu tinha olhos de um azul afegão.

A Bamyan da única governadora mulher, da primeira mulher taxista e onde ainda se andava a pé, incluindo passeios nocturnos na pista não asfaltada  do aeroporto sob um céu de estrelas-já-ali-do-hemisfério-sul e das meninas que, muito cedo, caminham à beira da estrada, dirigindo-se à escola já não é a minha Bamyan.

Ao longe, do outro lado da auto-estrada, entrevejo as antigas instalações da fábrica de cerveja Fischer. Vão transformá-la em apartamentos, de certeza de "standing". Não serão para os bolsos da senhora de olhos azul afegão nem para os meus. Viva o design industrial e a Bamyan que eu conheci.