sábado, 28 de setembro de 2013

(Desa)pega(do)


Aviso à navegação: este bilhete foi escrito, dentre outras coisas, em torno das variações da palavra pega, no dicionário electrónico, priberam.pt/dlpo/

 
Hoje, de manhã, bebi chá Leão de ca(mo)mil(l)a; e que bonito logótipo é aquele em que chá Leão se escreve formando uma chávena de chá (e o chá já vem na chávena). O “c” é a pega da chávena – a pega da chávena também se pode chamar “asa” da chávena - e é bem verdade que também se voa quando se bebe chá Leão. Voamos como a pega (comum no Norte de Portugal) por entre o branco e preto da sua plumagem e, às vezes, quando gostamos realmente do que bebemos, sentimo-nos como o mastaréu, que, do alto do mastro, encavalitado na pega, não percebe o que anda a fazer aquele leão que anda a separar folhas para chá.

Às vezes, o chá não é bom (o que não é o caso do chá Leão) e, então, temos que beber o chá como quem agarra o touro à mão, pelo cachaço ou pelo lombo; às vezes, o chá está muito quente; e, então, utilizamos uma pega para segurar a chaleira quando vertemos o chá na nossa chávena que seguramos pela pega.

O gosto do chá acompanha-me pelo dia fora e sei que não vou sozinho.
 
 
 
 

Algures, em Londres, no Dia Internacional dos Direitos Humanos

(À procura de uns papéis, encontrei este escrito no verso de uma folha que reproduzia a Carta de D. Manuel para os Reis Católicos, o manuscrito com o original da Carta que, em 1501, D. Manuel enviou aos Reis Católicos descrevendo a viagem da frota de Pedro Álvares Cabral).

Numa rua de Londres, há alguém cabisbaixo, com a face escondida. Vemos apenas, daquele monte humano, uma parte dos pés – como uma estátua de um deus do Olimpo – onde ainda se conseguem entrever os pés ou parte deles – o que parecem umas pernas e um gorro onde está escrito “London”. “London” será, provavelmente, uma formação, que, inicialmente, humana, por vezes, não tem face; quer dizer, face tem, mas está escondida. Às vezes, a face encontra-se num daqueles muitos jardins privados cujas grades não conseguem conter o chilrear dos pássaros, mas, muitas vezes, a face está sentada na rua, encoberta, com um gorro ou um boné e uma mão estendida; e nós? Europeus co-titulares de um Prémio Nobel da Paz o que fazemos para que esta face não se mantenha encoberta?

terça-feira, 17 de setembro de 2013

“Et si les lendemains dansaient?”


Em homenagem ao dia de hoje que é ontem com roupas de amanhã

Neste dia que não parecia fadado para que se passasse grande coisa, por volta das 19h, saí para comprar pão: nestes 10 minutos de passeio, aconteceu-me tudo o que pode caber num dia. Amaldiçoei a chuva até ver o arco-íris; parei por uns minutos porque um arco-íris merece que se pare para vê-lo; fui até à padaria mas, ao ver a porta fechada, lembrei-me que era segunda-feira e estava fechada; contudo, se não tivesse ido até aí, não teria visto o arco-íris. Vi também uma rapariga que quase desaparecia por debaixo do seu guarda-chuva transparente, o que não deixa de ser interessante: alguém que se escondia por debaixo de algo transparente.

Depois, caminhei até à padaria mais próxima; no caminho, lembrei-me da minha desventura de hoje: cortei o meu cartão sim para adaptá-lo a um outro telefone e, desde então, o telefone indica que estou em “roaming”. Finalmente, um telefone que parece adaptar-se aos tempos que vivemos: mesmo estando no que deveria ser o seu país de origem, indica que está em “roaming”. Haverá custos associados? A talho de foice, digo também que me senti em “roaming”, na Madeira, há dias. Senti-me turista, em casa, e não gostei. Seria do chapéu de palhinha (mas ele tinha sido comprado na Rua de Santa Maria; pois, talvez nenhum madeirense compre chapéu de palhinha na Rua de Santa Maria; será como o peixe espada com banana?) ou de andar a saltitar do jardim do Museu Frederico de Freitas até ao Convento de Santa Clara?

Depois, quando voltava a casa, na rua Beethoven (e talvez não por acaso) vi um graffiti (acho que, talvez, o primeiro graffiti que vi neste bairro): “et si les lendemains dansaient” (e se os amanhãs dançassem); abriu-se-me um sorriso de ponta a ponta, escarlate, como a tinta do graffiti. Já estou em pulgas para amanhã (na verdade, hoje, dia em que escrevo). Como diria o José Duarte, na Antena 1, “A menina dança?”.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Ainda antes do café da manhã

Aviso à navegação: este texto deve ler-se ao som de "Apinajazz"


Ainda antes do café da manhã, em São Paulo, ouvimos a cidade a ser construída. Aquele barulho firme do martelo que modela a pedra, nesta cidade-de-pedra-e-esperança-de-um-amanhã-diferente.
 
Ouço também um apartamento que se põe bonito para os sorrisos que irá receber mais tarde.

Neste quarto de paredes brancas e memórias de cor, ouço também uma cidadania em movimento, que se põe bonita para os sorrisos que quer legar a quem virá depois. É uma cidadania que se constrói como o martelo que molda a pedra na cidade.

Ontem, ao chegar a esta megapole, vi, da mesa onde me sentava, uma luz suspensa do alto da cidade. Cuidar da cidadania e da nossa casa pode ser tão frágil e tão importante como cuidar dessa luz suspensa. Contudo, atenção, porque a cidadania, ao contrário da cor, não pode ser uma impressão que a luz reflectida pelos corpos produz no órgão da vista (ou sê-lo-á?).
Escrever este texto de uma rua com nome indígena faz todo o sentido.