quarta-feira, 28 de março de 2012

Equacionando o que fazer

Se pudéssemos falar por algarismos, como escreveríamos? Se um 2 fosse amor e um 3 desencanto, o que sucederia quando se chegasse aos 23 anos de uma relação?

Nos recibos dos "restaurantes" McDonald's, em Estrasburgo, a vida já existe em números. Fui atendido pela empregada #3 (este 3 não era, ao contrário do que referi anteriormente, de desencanto, era um 3 com um sorriso vago, eficiente, diria, mas simpático; comi no restaurante 54 do grupo (quantos haverá em França?). O código de acesso das casas-de-banho é o 1979B, uma maneira post-moderna de evitar a tabuleta branca com letras azuis nas portas das casas-de-banho onde se indicava que a utilização das casas-de-banho é exclusiva para clientes. 1979 foi o ano em que eu nasci; 10 anos depois do homem (na verdade, os homens) terem chegado à lua pela primeira vez - será que viveríamos num mundo diferente se tivessem sido mulheres a chegar à lua pela primeira vez; e que teria(m) ela(s) dito?

Penso nos encontros e desencontros binários que se processam - e que nem consigo imaginar dada a velocidade vertiginosa dos mesmos - para que eu possa utilizar a internet sem fios, num só clique; quantos milhares de equações intermedeiam o que vejo no pequeno écrã do meu telefone e o meu olhar? E eu? Quantas equações intermedeiam entre mim mesmo e o ir ao encontro de alguém?

terça-feira, 27 de março de 2012

Copo de vidro e relações humanas

A Elina - a minha sobrinha de quase quatro anos - disse-me, há dias, que não queria beber num copo de vidro (em inglês, "glass" é ao mesmo tempo vidro e copo e pode também ser espelho) porque "podia partir-se"; nesse momento, pensei que, nas relações entre adultos, é habitual querermos logo beber no copo de vidro - o copo de festa - mas corremos o risco de parti-lo. Nas relações humanas, ao contrário dos copos, uma vez quebradas, é difícil repará-las e ninguém quer substituí-las. A Elina tinha razão. Dei-lhe um copo de plástico.

quinta-feira, 15 de março de 2012

O republicano com uma rainha nos bolsos

Hoje, fui comprar (o) pão (nosso de cada dia) à padaria do bairro. Quando estava na fila, preparava o troco certo para não fazer ninguém esperar. As duas moedas de €2 que tinha apresentavam uma águia alemã e a efígie da rainha Beatriz da Holanda (com a particularidade de todo o século XX ter sido o século de rainhas, na Holanda: Guilhermina, Juliana, e, agora, Beatriz). Entre uma rainha e uma águia - apesar do destino do coração desta rainha ter sido atado ao de uma águia alemã pelos laços do matrimónio com Claus von Armsberg - dei a águia e fiquei com a rainha; contudo, não sei se a poderei guardar por muito mais tempo porque, hoje em dia, os euros não chegam a arrefecer nos bolsos ou carteiras. Quando se sai da padaria, sai-se normalmente com vestígios de farinha na roupa que nos desenham o mapa da fome ou da gula mas eu, republicano (com o significado que lhe é atribuído deste lado do Atlântico) convicto saia com uma rainha nos bolsos. Até quando?

segunda-feira, 5 de março de 2012

Es-pêra-da

A pêra-rocha, em França, é verdadeiramente dura de trincar mas, ao contrário do que se possa pensar, não é de rocha que lhes vem o nome mas de António Rocha, um mercador de cavalos do séc. XIX, de Sintra. Rocha de nome e rocha ao trincar. Fruta que vem de Portugal, do oeste.

O que eu sei é que sempre que passo por aquele cantinho do supermercado onde vendem a pêra-rocha, ponho-me a sorrir; e penso em Cézanne; parece que ele passou grande parte da vida à procura da pêra perfeita para que a pudesse desenhar; se ele soubesse… no supermercado a que vou, os clientes, esses, parecem passar-lhe ao lado[1]; se eles soubessem…

Para que a estória se complique ainda mais na história, pêra foi o nome que os portugueses deram à goiabeira quando esta se aclimatou na Índia; nalgumas partes de Portugal, pêra é também uma variedade de melão; em Moçambique e na Madeira, pêra-abacate é o nome do abacate, o eterno transeunte entre o fruto que é e o legume que parece teimar em querer ser; e continuamos a viajar pelo mundo, o que pode ser doce, mas, nem sempre, pêra doce; contudo, espero que viajar, o tenha para peras (i.e. para muito tempo). Pêra é até, no seu diminutivo carinhoso, aquela porção capilar que deixamos crescer no queixo; pode ser também, cuidado, um murro.
Veio o acordo ortográfico e tirou-lhe o chapeuzinho; será que, agora, ela tem mais frio? De rocha a rochedo? Ainda pensei que sem chapeuzinho, as peras-rocha pudessem ter frio mas elas já não são conservadas em câmaras de frio mas sim em câmaras de atmosfera controlada; já não passam frio; tiram-lhes é o oxigénio. É assim possível uma conservação muito mais prolongada; será que a vida hodierna é como a pêra rocha conservada em câmaras de atmosfera controlada: de conservação prolongada mas, para isso, sem oxigénio?



[1] Contudo, inteiro-me que 25% da produção de pêra-rocha é escoada para França; v. http://economia.publico.pt/Noticia/vendas-de-perarocha-a-crescer_1494304 , consultado a 5 de Abril de 2012.