segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Como o Seu Júlio gosta do vão livre do Tiradentes


O senhor Júlio tem cabelos brancos como a neve que nunca cai em Belo Horizonte. Ainda se vêem alguns tufos de cabelo pintado mas a alvura vai vencendo uma luta desigual.

Ele tem uma lanchonete na Savassi, um dos bairros de Belo Horizonte, há 35 anos, disse-me ele, abrindo a mão em arco. Ele veste camisa e colete o ano todo, quando faz frio e quando faz menos frio. Um homem sem hábitos não é homem.

O negócio talvez tenha baixado desde que os administradores da Praça da Liberdade passaram para a cidade administrativa desenhada por Niemeyer, em Confins, perto do aeroporto. O senhor Júlio talvez não tivesse pensado que aquele arquitecto que não gosta de linhas rectas, e, por conseguinte, de esquinas, lhe iria trocar as voltas. A verdade é que Seu Júlio não deixa de admirar aquele vão livre de 147 metros - o maior do mundo - do Palácio Tiradentes, um dos edifícios da cidade administrativa. O senhor Júlio sorri por dentro ao pensar que o vão livre (“a pala”) do Siza, no Pavilhão de Portugal, do outro lado do Atlântico, tem apenas 75 metros. Tiradentes – ou Xavier, como lhe chamava Véronique, uma das personagens do imperdível livro “A Paixão deTiradentes” - não tinha disputado apenas a soberania injusta da coroa portuguesa, tinha, através de Niemeyer, provado que, nem tudo o que desafia as leis (da Coroa e da gravidade) tem necessariamente de cair, ou, por outras palavras, que nem tudo o que cai é porque não se poderia ter mantido de pé.

Ao senhor Júlio também lhe corre sangue português nas veias; não se sabe muito bem donde mas, isso, não é importante. O sangue português e brasileiro são indissociáveis e não era preciso um acordo ortográfico para nos sentirmos mais próximos.

Sentamo-nos numa mesa perto da calçada portuguesa de gosto tropical e vemos Belo Horizonte passar; e o bolo é bom e o cafezinho sabe bem. De repente, sai uma empregada da cozinha que adverte Seu Júlio para que um salgado já tá acabando e que é melhor fazer mais. O Seu Júlio, como que transfigurado em general de um exército de um só soldado (soldada, porque no Brasil tudo tem feminino, o que não é necessariamente mau) estica a farda que ainda agora era colete, ajeita o cabelo e, no meio daqueles olhos mansos, diz, com um gesto resoluto da cabeça e seguro de si: “Avance!”.

No Senhor Júlio, os salgados e o cafezinho ainda são acessíveis a uma bolsa normal. Numa Savassi que se moderniza, o que vai sendo sinónimo de aumento generalizado de preços, a pergunta que me ia colocando era: até quando?

1 comentário:

  1. Prezado Marco
    Não faço ideia do motivo, mas essa sua mensagem só apareceu hoje na minha caixa. Mesmo tardiamente, preferi respondê-la, pois fiquei tocada pelo seu texto. ´Sinto-me assim com relativa frequencia a respeito de alguns livros e "ouvir" que você sentiu-se desta maneira a respeito deste singelo trabalho deixa-me cheia de alegria e motivação. Li o texto no seu blog (gostei bastante, a propósito) e agradeço por ter nos mencionado. Espero que tenha encontrado o futuro que estava a procurar. Conheço um bom tanto da França, mas, ainda, nada da região de Estrasburgo (a não ser por "ouvir dizer"). Você é português? Viajei por Portugal (do Porto até Lisboa, com paradinhas e paradinhas) e fiquei encantada com o país dos meus antepassados. Senti-me em casa e vi que a tão falada cordialidade dos brasileiros é um herança da gentileza dos portugueses. Por favor, faça-me saber se recebeu esta mensagem, pois fiquei desolada por não tê-la visto antes. Um grande abraço para o proseador poeta.
    Stefania G Assunção

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