terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Quando tropeçamos na (in)visibilidade


Vinha de bicicleta a tentar escapar à chuva miudinha que teimava em não parar quando vi um senhor de sacos-(c)asa abrigado, à porta do “Palais Universitaire”. Quase não se dava por ele, apesar de estar sozinho num dos arcos que dá acesso ao pátio coberto de um dos edifícios da “Neustadt”, bairro construído quando os alemães ainda contavam ficar pela Alsácia (e não só) durante os tais 1000 anos. Há uma clarabóia enorme – na verdade, todo o telhado – que banha de claridade as colunas neo-clássicas e aquele chão de mármore. Nesse mesmo espaço ocorreu a aula inaugural da “Reichsuniversität” (a Universidade Ocupada de Estrasburgo, enquanto a Universidade Livre de Estrasburgo partia até Clermont-Ferrand) e também a sessão inaugural do Conselho da Europa, antes de haver o edifício que lhe é, hoje, destinado.

Voltemos ao senhor dos sacos-(c)asa que se abrigava em frente ao pórtico que havia visto passar comandantes e académicos nazis e pró-nazis, democratas que tentavam unir a Europa, estudantes que querem aceder ao saber dos livros e fora deles. O senhor dos sacos-(c)asa chamou-me ainda mais a atenção porque eu acabava de ver o documentário de Claus Drexel, “Au bord du monde”.

Talvez uma das coisas mais importantes que este documentário faz é dar um nome às pessoas (e aos rostos) que dormem na rua, em Paris: Wencelas, André, Michel, Pascal, Closte (?), Po Lingh, Christine… Quando se dá um nome a alguém, essa pessoa e esse rosto deixam de ser invisíveis; cresce-nos, por dentro e por fora, uma responsabilidade, talvez originada da empatia que aquele rosto (como diria Lévinas) e o seu nome nos impõem. Ao conhecido “ton visage m’oblige” talvez se possa acrescentar “ton (pré)nom m’oblige”. Deparamo-nos com várias tentativas de obnubilar, tornar invisíveis pessoas – cuja tentativa é que deixem de o ser – que “não interessam”. No Ruanda, os tutsis foram apelidados de “baratas”, os Judeus, nos campos de concentração, não tinham um nome, tinham um número e a esqualidez fazia com que todos se parecessem iguais, sem a individualidade que caracteriza o ser humano (mas individualidade não tem que rimar com individualismo).

As pessoas (sim, são-no) do documentário de Drexel são artistas de circo (funâmbulos) que caminham na corda bamba sem rede de segurança; contudo, nós, os espectadores, não os vemos. Caem e não há espanto; voltam a endireitar-se para voltar a caminhar e não há reacção do público (que nem se apercebe que não é público mas co-actor). A que distância deixamos o dever de nomear e, por conseguinte, o dever de dar a mão ao outro? Quando não há tacto não há contacto.

No documentário, havia também um senhor que, ao entrar no seu “squat”, por debaixo da ponte “Louis Philippe”, titubeou, atrapalhou-se com a sua canadiana e caiu. Não sei o que aconteceu depois. Ele chama-se Marco.
 
 

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